Coleção Baderna – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 07 Feb 2014 11:56:30 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Coleção Baderna – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Luther Blisset e a guerra antimidiática contra o biopoder https://baixacultura.org/2014/02/07/luther-blisset-e-as-taticas-antimidiaticas-contra-o-biopoder/ https://baixacultura.org/2014/02/07/luther-blisset-e-as-taticas-antimidiaticas-contra-o-biopoder/#respond Fri, 07 Feb 2014 11:56:30 +0000 https://baixacultura.org/?p=9802 Luther_Blissett

A monografia de Dairan Paul “O guerrilheiro Luther Blisset: criação de táticas antimidiáticas contra o biopoder”, é um primor de análise: relaciona Foucault, Hardt & Negri, Michel de Certeau, neoísmo/mail art com o contexto histórico dos centros sociais italianos e até as teorias do jornalismo para falar dos trotes (as “pranks”) que Luther Blisset fez na mídia italiana do início dos anos 1990. É o trabalho final do aluno no curso de jornalismo da UFSM, banca realizada em dezembro de 2013 que o editor desta página e quem cá escreve hoje, Leonardo Foletto, participou.

LB, talvez a identidade coletiva mais conhecida desde então, chegou a enganar os jornais italianos durante um ano, plantando notícias, provas e cartas falsas e escancarando a fragilidade do jornalismo preguiçoso que se quer mediador da “realidade”. Foi um caso exemplar de mídia tática, que Dairan traz para seu trabalho com farta documentação histórica (muita delas traduzidas diretamente do original em italiano, com ajuda da orientadora Aline Dalmolin) num texto preciso – e que muito tem a dizer também sobre táticas parecidas utilizadas hoje, num mundo hiperconectado de redes sociais.

Algum tempo depois que participei da banca, escrevi um post no Facebook falando isso tudo acima e dando os parabéns ao novo jornalista formado na UFSM. Senti um interesse enorme de amigos e conhecidos pelo trabalho – afinal Luther Blisset vive!  – e convidei Dairan para escrever um relato sobre a feitura de seu TCC. É esse texto que vocês vão ler logo abaixo, seguido da sua monografia, “O guerrilheiro Luther Blisset: Táticas antimidiáticas contra o biopoder“, que está disponível desde hoje na nossa biblioteca.

lutherblissetproject

O primeiro contato que tive com o nome Luther Blissett ocorreu através de uma música. A banda só poderia ser underground, é claro, para citar um tema obscuro confinado em uma Itália da década de 1990. Mas, quando comecei a ler sobre Blissett, entendi que aquele fenômeno ainda fazia muito sentido nos dias de hoje – e daí até adquirir o Guerrilha Psíquica foi um pulo. O problema é que esse livro (assinado pelo próprio L. B. e lançado no Brasil pela Conrad na ótima Coleção Baderna) acabou sendo a minha “bíblia blissetiana” durante um bom tempo, já que há poucos trabalhos sobre L. B. no Brasil – e Guerrilha não se trata exatamente de um estudo científico, mas de relatos das ações e dos propósitos de Blissett.

Durante o estado da arte dessa monografia, pude constatar que o meu objeto de pesquisa é muito mais citado do que estudado, servindo como exemplo para trabalhos que versam sobre direitos autorais, ativismo, cultura wiki, etc. O seu aspecto que mais chamou minha atenção – a disseminação de notícias falsas que enganaram diversos jornais italianos – não era debatido. Quando o tema estava posto em algum trabalho, continha basicamente citações do Guerrilha Psíquica contando as narrativas fantásticas criadas pelo Blissett – de prostitutas soropositivas que furavam a camisinha de seus clientes até rituais de missa negra que incluíam estupro; prato cheio para o sensacionalismo dos tabloides locais. Nada de novo para quem já tinha lido a única publicação em português de L. B.

Foi delineando esse aspecto do fenômeno Luther Blissett que resolvi, então, analisar quais eram as táticas antimidiáticas utilizadas para impregnar as notícias falsas dentro dos jornais da época. O artigo de Marco Deseriis sobre L. B. (um dos poucos estudos que tratam exclusivamente dele) foi de suma importância para a pesquisa. A partir do autor, pude compreender Blissett como uma resistência biopolítica frente ao biopoder midiático – a criação de narrativas falsas sobre ritos satânicos como forma de desvelar a cruzada moral realizada pela mídia que acusava, por exemplo, diversos satanistas da época de pedófilos (a exemplo do caso Marco Dimitri, que fora inocentado posteriormente). Blissett também representa a figura do comum, remetendo aos estudos de Michael Hardt e Antonio Negri. Uma produção comum de caráter imensurável (dado que o contexto que situo Blissett é o do trabalho imaterial, onde a produção reside nas relações sociais e, portanto, torna-se difícil de ser quantificada) e excessivo (pois Blissett é formado justamente por esses trabalhadores imateriais, que utilizam da criatividade para se voltar contra o biopoder, na força-cérebro que o espetáculo não consegue capturar).

Uma vez que defini Blissett como resistência, o segundo movimento teórico do trabalho foi assimilar o fenômeno como uma mídia tática, em oposição à mídia alternativa. Esses conceitos ainda são discutidos dentro do meio acadêmico, sem uma definição exata – o que, de certa forma, é proposital. A dissertação de Henrique Mazetti foi um achado, justamente por discorrer sobre essas duas formas de correntes críticas a partir de quatro dimensões: espaço-temporal (remetendo a Certeau), política, midiática e discursiva. O que concluí analisando as táticas de Blissett é que elas somente ocorrem a partir da própria mídia, pois não possuem um lugar de fala próprio (como é o caso da mídia alternativa). Ao prezar pelas experimentações, a tática ridiculariza seu inimigo e a si mesma; ela não precisa se embasar por argumentos racionais e se autolegitimar. Daí uma série de brincadeiras feitas por L. B. onde a risada é a sua principal arma, e rir da mídia parece ser seu intuito. Isso, é claro, não despolitiza as ações de Blissett. Entendo que elas são tanto culturais como políticas, e que as duas esferas são indissociáveis – portanto, sua caracterização como uma resistência híbrida, que toma para si tanto aspectos de vanguardas artísticas (a utilização de um nome múltiplo a partir do Neoísmo e da mail art) como o referencial neomarxista de Negri, para constituir uma resistência biopolítica a partir da criatividade e da cooperação imaterial.

Este trabalho, obviamente, não se pretende uma bíblia blissettiana, mas busca colocar em pauta dentro da academia um tema que (surpreendentemente) pouco aparece nos estudos sobre cibercultura. Mesmo que se constitua por um objeto de duas décadas atrás, a figura de Blissett pode ser entendida como um embrião do aconteceu em Seattle, no ano de 1999, ou mesmo nos protestos do Brasil, mais recentemente. E, se ainda quisermos regionalizar mais a existência de L. B., recentemente uma notícia postada por Zero Hora retrata a farsa da construtora Luther Blissett que resolveu construir um parque em meio à Redenção, em Porto Alegre. Em algum lugar, de algum modo, Blissett parece ainda existir – inclusive escrevendo monografias sobre si mesmo.

[Dairan Paul]

Imagens: http://www.inenart.eu/
 
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Estamos Vencendo: resistência global no Brasil e no Mundo https://baixacultura.org/2012/02/02/estamos-vencendo-e-a-resistencia-global-no-planeta/ https://baixacultura.org/2012/02/02/estamos-vencendo-e-a-resistencia-global-no-planeta/#comments Thu, 02 Feb 2012 17:18:47 +0000 https://baixacultura.org/?p=5746

Bem antes de Charlie Shen adotar o lema “Winning” ou de Mark Zuckerberg pensar em criar o Facebook, um movimento profético se rebelava contra a falência de um sistema (financeiro, político) em pleno coração do capitalismo.

Este movimento – que no subterrâneo existe desde sempre, seja nas mãos dos anarquistas, do movimento estudantil ou dos punks, situacionistas e outras redes culturais – tomou de “assalto” as ruas da capital grunge, Seattle, em 30 de novembro de 1999, na reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio), no que foi conhecido como a “Batalha de Seattle“.

Isso tudo tu já deve saber, pois explicamos brevemente neste texto. O que não falamos é que Seattle foi a ponta de lança de um movimento subversivo –  anticapitalismo, anti-globalização, ou o nome que se queira dar – que se espalhou pelo mundo nos anos seguintes. Especialmente no período de 2000 a 2003, cidades como Washington, nos EUA, Gênova, na Itália, Praga, na República Tcheca, Quebec no Canadá, e São Paulo, no Brasil, foram palco de manifestações contra as múltiplas facetas autoritárias/ maléficas que a $$, o preconceito e o individualismo podem trazer para a sociedade.

No Brasil, uma das melhores referências para entender o que aconteceu é o livro “Estamos Vencendo! – Resistência Global no Planeta“, de Pablo Ortellado e André Ryoki, publicado pela Conrad em 2004 na linda Coleção Baderna. Ele documenta, através das fotos do historiador Andre Ryoki, e reflete, com um texto do hoje professor da USP Pablo Ortellado, como se deram as manifestações “antiglobalização” em terras brasileiras, especialmente aquelas que ocorreram em São Paulo, Fortaleza, Belo Horizonte e Curitiba.

São as fotos do livro que tu encontra mais abaixo nesse post, colocadas em uma galeria do Picasa para facilitar a visualização. Clicando em cada foto, você é direcionado para o Picasa e poderá ver as fotos e as legendas originais que estão no livro.

Cartaz do Adbusters, que esteve em Seattle 1999 e Wall Street 2011

Qualquer semelhança de protestos no “coração” do sistema financeiro que foi (é) Occupy Wall Street não é mera coincidência. Como escrevemos anteriormente, existe (pelo menos) um elo que une estes dois momentos históricos: o Adbusters, revista/movimento anticonsumo com sede no Canadá, que esteve nas manifestações de Seattle em 1999 e convocou o Occupy Wall Street em 2011. [E que, em breve, vai ganhar mais destaque por aqui; aguarde].

Mas também há diferenças bem claras. Naomi Klein, escritora/ativista e autora de “No Logo” (traduzido aqui como “Sem Logo- A tirania das marcas em um planeta vendido“), livro essencial para entender o mundo hoje, fez um discurso no parque Zucotti, em Wall Street, em que ressaltou estas diferenças de alvo, tática e contexto – não sem antes afirmar que “amava” os manifestantes que ali acampavam. Publicamos o discurso na íntegra, em tradução do professor Idelber Avelar, e reproduzimos aqui os trechos em que ela traça o paralelo entre as diferenças entre os dois movimentos:

Em Seattle, em 1999, nós escolhemos as cúpulas como alvos: a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o G-8. As cúpulas são transitórias por natureza, só duram uma semana. Isso fazia com que nós fôssemos transitórios também. Aparecíamos, éramos manchete no mundo todo, depois desaparecíamos. E na histeria hiper-patriótica e nacionalista que se seguiu aos ataques de 11 de setembro, foi fácil nos varrer completamente, pelo menos na América do Norte.

O Ocupar Wall Street, por outro lado, escolheu um alvo fixo. E vocês não estabeleceram nenhuma data final para sua presença aqui. Isso é sábio. Só quando permanecemos podemos assentar raízes. Isso é fundamental. É um fato da era da informação que muitos movimentos surgem como lindas flores e morrem rapidamente. E isso ocorre porque eles não têm raízes. Não têm planos de longo prazo para se sustentar. Quando vem a tempestade, eles são alagados.

Mas a grande diferença que uma década faz é que, em 1999, encarávamos o capitalismo no cume de um boom econômico alucinado. O desemprego era baixo, as ações subiam. A mídia estava bêbada com o dinheiro fácil. Naquela época, tudo era empreendimento, não fechamento.

Nós apontávamos que a desregulamentação por trás da loucura cobraria um preço. Que ela danificava os padrões laborais. Que ela danificava os padrões ambientais. Que as corporações eram mais fortes que os governos e que isso danificava nossas democracias. Mas, para ser honesta com vocês, enquanto os bons tempos estavam rolando, a luta contra um sistema econômico baseado na ganância era algo difícil de se vender, pelo menos nos países ricos.

Dez anos depois, parece que já não há países ricos. Só há um bando de gente rica. Gente que ficou rica saqueando a riqueza pública e esgotando os recursos naturais ao redor do mundo.

Rodrigo Savazoni também lembra o discurso de Naomi e a relação Seattle 1999 Wall Street 2011 em um texto na revista Select deste bimestre (que entra no site na próxima semana), que também vale a leitura.

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Como diz o texto de divulgação de “Estamos Vencendo!”, “as fotos destacam três dimensões constitutivas desse novo movimento: a ação direta das ruas, a criatividade auto-expressiva das manifestações e a constituição de um novo tipo de coletividade onde a massa homogênea é substituída pela diversidade individualizada da multidão“. A maioria delas estão aqui abaixo, gentilmente cedidas por André Ryoki, a quem agradecemos imensamente. [O livro está em Copyleft].

“Sobre a passagem de um grupo de pessoas por um breve período da história”, texto de Pablo Ortellado que abre o livro, contextualiza de forma interessantíssima o que ocorreu nas ruas brasileiras daquele início de década passada. Traz inicialmente uma breve explicação de onde e como surgiu o movimento antiglobalização no Brasil – “da convergência de outros dois movimentos que surgiram ou re-emergiram nos anos 1980, o movimento estudantil independente e autogestionário e o movimento anarquista propriamente dito”.

Estas duas vertentes, continua Pablo, “convergiram, mais ou menos casualmente, atraídas pelos fascinantes acontecimentos de Seattle. Mas o movimento, claro, não começou em Seattle, como dizia o slogan das manifestações contra a ALCA em 2001. De fato, Seattle foi a vitrine midiática de um movimento que pode ter muitas origens, mas que, na sua vertente radical, remonta à inspiração da revolta zapatista em 1994 e à articulação dos dias de ação global em 1998.” [Para um estudo aprofundado dessas origens, ler Aproximações ao movimento ‘antiglobalização’“, do próprio Pablo]

A partir dessa contextualização inicial, o doutor em filosofia e hoje professor da USP Ortellado propõe reflexões sobre o movimento em torno de sete eixos: autonomia, anticapitalismo, redes, liderança, auto-expressão, mídias e alternativas. São páginas que todo movimento de hoje deveria ler para se fortalecer enquanto movimento e, principalmente, para aprender com as experiências anteriores, já que o texto é bem sincero e crítico quanto as agruras e maravilhas de se estar num convívio com pessoas diferentes de forma horizontal.

Na parte que trata das redes, por exemplo, ele as diferencia conceitualmente de outras formas semelhantes de organização e aponta características dessa relativamente nova forma de se organizar que são as redes. Uma das características aqui abaixo:

“As redes não precisam se desfazer e refazer a cada oportunidade, elas podem simplesmente adquirir diferentes formatos e composições. Se num determinado momento, um grupo tem um desentendimento pontual, ele não precisa abandonar a rede, mas pode simplesmente não colaborar naquele ponto, da mesma forma que, em momentos específicos, a rede pode incorporar a colaboração extraordinária de novos agentes que se interessam apenas por uma ação específica. Isso significa apenas levar o velho princípio anarquista da livre-associação até a sua conseqüência lógica: a livre dissociação.”

Por questões de espaço (o texto de abertura tem 15 páginas!), não vamos publicar aqui a íntegra. Pela mesma questão de espaço, não publicamos também a cronologia que o livro faz dos acontecimentos da época. Mas todas estas partes que não são fotos e imagens do livro podem ser lidas, baixadas e compartilhadas neste link.

É uma referência histórica importante para entendermos o ativismo do intenso 2011 que passou e do transformador 2012 que está começando.

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DA NECESSIDADE DE CONTINUAR OCUPANDO AS RUAS

[Clique nas fotos para ver o restante da galeria.]

O31, 2002. No dia 31 de outubro de 2002, ministros dos países envolvidos com o projeto da ALCA reuniram-se em Quito, Equador, para mais uma rodada de negociações. Houve manifestações em todo o continente americano. Em São Paulo, os manifestantes organizaram uma passeata desde as escadarias da Casper Líbero na Av. Paulista até o Largo do Patriarca, no centro da cidade. No final do percurso houve distribuição de feijoada vegan para o pessoal que saía do trabalho.

 

SE EU NÃO PUDER DANÇAR, NÃO É MINHA REVOLUÇÃO

 

N9, 2001. Uma rápida parada durante o McLanche Feliz.


MULTIDÃO

J20, 2001


ANEXOS (documentos, panfletos e cartazes de algumas das manifestações que ocorreram no período)

Cartaz de estudantes da USP chamando ao I Fórum Social Mundial em Porto Alegre.

[Leonardo Foletto, Marcelo De Franceschi]

Crédito da imagem: 1 [we are winning] 2 [adbusters]
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Anais da Contracultura (1): Os Provos da Venturosa Amsterdam https://baixacultura.org/2011/02/07/anais-da-contracultura-1-os-provos-da-venturosa-amsterdam/ https://baixacultura.org/2011/02/07/anais-da-contracultura-1-os-provos-da-venturosa-amsterdam/#comments Mon, 07 Feb 2011 11:52:34 +0000 https://baixacultura.org/?p=4026

Dando início a mais uma sessão inconclusa do BaixaCultura, falamos agora de alguns interessantes causos (a maioria pré-digital) contraculturais que surgiram mundo afora no ruidoso século passado (XX) que ajudaram a humanidade ser um pouco menos careta.

Não poderíamos deixar de começar pelo Provos, um “movimento” que surgiu na Holanda da década de 1960 e é, em muitos aspectos, precursor e inspirador do famoso Maio de 68 na França (tema de um próximo texto, quem sabe) e da cultura hippie que se alastrou no final da década de 1960 e início de 1970. Nas palavras de Matteo Guarnaccia em seu livro Provos – Amsterdam e o nascimento da contracultura, lançado pela Conrad pela famosa coleção Baderna (e que serve de base pra esse post), “juntamente com os Beatles, Allen Ginsberg e Bob Dylan, os Provos foram um dos elementos decisivos daquela estranha operação de alquimia que, por volta da metade dos anos 60, produziu uma deflagração de consciências“.

Se são tão importantes assim, tu deve estar se perguntando como que (provavelmente) nunca ouviu falar deles. Nós de pronto te respondemos que a culpa é do idioma, o pouco disseminado holandês, língua em que a maioria dos registros do movimento foram deixados – salvo raríssimas publicações em inglês. A única publicação de fôlego (em português) que temos conhecimento sobre os Provos é o livro de Matteo Guarnaccia.

PROVOS?

O nome “Provos” vem da abreviação de provokatie (provocação em holandês). O “movimento” Provos, se é que podemos chamá-lo de “movimento”, nasce da apatia em que um mundo imerso na sociedade de consumo pode provocar em seus habitantes. O excesso de conforto, de segurança e o amplo acesso aos bens de consumo na Holanda da década de 1960 deixava tudo muito chato, careta, sem graça, conformado. Na busca eterna do graal anti-marasmo, alguns jovens holandeses, herdeiros bastardos da tradição anarquista, passaram a fazer o que lhes parecia mais interessante no momento: provocar. Provocar a sociedade de consumo, o poder civil organizado, a apatia das pessoas perante aos meios de massa. Provocar.

A partir dessa insatisfação contra um suposto “nada”, manifestações espontâneas e isoladas de performáticos contestadores da indústria e da propaganda começaram a “pipocar” aqui e ali na venturosa Amsterdam, que por ser um lugar mais do que especial merece um tópico a parte.

AMSTERDAM

Não é novidade que Amsterdam sempre foi visto como uma cidade de vanguarda, representante da exceção, durante séculos acolhida de ideias e pessoas não convencionais – de judeus foragidos da Península Ibérica (entre os quais, a comunidade de origem do filósofo Spinoza) aos huguenotes franceses, brigados com a maioria católica na França dos séculos XVI e XVII – e morada estilos de vida francamente liberais e anti-militaristas. Guarnaccia nos conta que encontrar um acordo sobre um modo de convivência para melhorar o próprio estilo de vida foi, desde sempre, uma necessidade dos moradores daquele aglomerado que foi se desenvolvendo ao redor de um dique (dam, em holandês) no Rio Amstel, sempre sujeito à inundações e sem qualquer barreira natural de defesa. A população teve que, literalmente,”sair do pântano”, o que demandou uma relativa criatividade de sua população para a busca de um bem-estar social.

Essa, digamos, criatividade natural do povo de Amsterdam, somado à atitude de abertura à ideias e pessoas extravagantes, tornou a cidade (a única capital do governo a não ser sede do governo, que se localiza em Haia) particularmente turbulenta, resistente ao poder de quem fosse e cenário propício para o surgimento de formas criativas e radicais de protesto/provocação, como os happenings do próximo tópico.

HAPPENINGS!

Desde o início da década de 1960, diferentes movimentos contrários a ordem social conviviam em Amsterdam: os Nozems, conhecidos como vândalos dos bairros populares ao redor do porto da cidade, um dos maiores do mundo; jovens anarquistas, ansiosos em se rebelar contra algo; os Pleiners, uma cambada que se vestia de preto e que buscava no jazz, na filosofia e na arte novas formas de ver o mundo, possuindo um gosto particular pela cultura francesa; além de “toda aquela fauna formada por artistas, exibicionistas, beatniks, estudantes que largaram a escola, marginalizados felizes, degustadores de LSD, sonhadores, vagabundos e poetas, que desde sempre constituem o ingrediente básico de toda revolução“, como diz Guarnaccia no livro.

Um tipo particular – e à época recém começado a ser chamado por este nome – de manifestação artística passou a ganhar a atenção de todos eles: o happening. [De forma muito didática e simplória, podemos dizer que o Happening é uma forma de fundir a arte com a vida diária, uma manifestação artística que pega elementos das artes visuais, das artes cênicas e da performance para criar situações artísticas em ambientes cotidianos como praças, ruas, parques, etc.]. Um desses muito “desocupados-artistas-exibicionistas”, Robert Jasper Grootveld (na foto abaixo), passa a liderar uma serie de happenings, se tornando o “mago” dos Provos e um dos pai bastardos de boa parta das revoluções acontecidas na década de 1960.

A primeira e mirabolante ideia de Grootveld é criar um templo antifumo, a Igreja da Dependência Consciente da Nicotina, onde passou a trabalhar em happenings contra o vício inconsequente da nicotina. Um exemplo: dezenas de “fiéis” entoava o mantra “cof, cof, cof, cof” pelo tempo e ruas próximas. Outro exemplo: Grootveld sai a pichar outdoors e cartazes com um “k” negro, inicial da palavra kanker (câncer). Mais um: o mesmo Grootveld sai pelas ruas de Amsterdam pedindo cigarro a todos que encontra. Em vez de jogar fora ou algo do tipo, ele fuma todos cigarros que consegue, virando uma chaminé de nicotina ambulante. Objetivo: mostrar, através de seu próprio corpo, o mal que faz o cigarro.

Dá uma olhada nesse enxerto do documentário “It’s a happening (1966)”, onde Grootveld explica/confunde/mostra seu happening:

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=omb23Qm_RG8]

Com uma seita considerável de malucos à sua volta, o “mago” passa a liderar happenings que acontecem todo sábado, uma praça na Spui, ao redor da estátua de Lieverdje – obra do escultor Carel Kneuman, que representa um menino de rua –, doada para Amsterdã por uma indústria de tabaco (na foto abaixo). Grootveld pousa seus olhos nessa estátua e decide fazer ali, toda noite de sábado, seus rituais contra a pasmaceira geral: cerimônias que incluem dança, canto, teatro, jogos e discursos absurdos (frutos do movimento dadaísta), que terminam com uma imensa fogueira alimentada pelos curiosos e uma “congregação” de jovens.

Happening na Spui, centro de Amsterdam

Os encontros eram organizados sob o espanto geral da população e da polícia, que enxergava ali uma porção de baderneiros que deveria banir com truculência. Sempre que aparecia na Spui, a polícia era recebida com risos e dispersão; um dos “preceitos” nascentes dos Provos era a não-violência e a provocação, sempre mais importante que o revide.

Na Europa, já temos de tudo: televisão, liqüidificadores e motocicletas. Já que na China eles ainda não têm liqüidificadores, seu único objetivo é de os terem o quanto antes. Quanto chegamos a possuir tudo, eis que inesperadamente chega uma espécie de vazio”, Robert Jasper Grootveld

Das junções na Spui surgem outros “xamãs” anunciando mudanças – Roel Van Duijin, Rob Stolk e Luud Schimmelpenninck, que vão ser dos mais destacados líderes Provos.

PROVOS EM AÇÃO

As milhares de pessoas que se uniam em torno dos happenings de Grootveld passam a se reunir com cada vez mais frequência. A partir dessas reuniões, Roel Van Duijin e  Rob Stolk encabeçam a publicação de uma revista mensal, intitulada Provos – que começa como um panfleto colocado clandestinamente dentro de jornais conservadores, onde defendem uma conduta antisocial (contra o bem-estar holandês), o nomadismo, a arte, a ecologia, o fim da monarquia, dentre outras bandeiras. Através da publicação, os Provos conclamam os jovens a se unirem contra toda a sorte de alvos (carros, polícia, igreja, monarquia, sociedade de consumo, etc) e se colocam a favor do uso da bicicleta, da emancipação sexual, do homossexualismo, da maconha, do fim da propriedade privada e de qualquer forma de poder ou proibição.

As “bandeiras” provos dão origem aos Planos Brancos, uma série de textos veículados nas várias edições da revista Provos e que acabaram constituindo o grosso das ideias/ações do movimento para a cidade.  Alguns deles (ou todos) são extremamente avançados para o pensamento da época (e ainda para hoje), de modo que vale a pena resumir um pouco deles aqui abaixo:

_ Plano da Bicicleta Branca:
Iniciado por Schimmelpennick, o plano previa o fechamento do centro de Amsterdam para todos que andassem com veículos motorizados, incluindo motos. A ideia era fazer com que pelo menos 40% das pessoas usassem o transporte público da cidade. Táxis eram aceitos, desde que fossem movidos a eletricidade e que não passasem de 25 km/h. O plano previa a compra, pelo governo municipal,  de 20 mil bicicletas por ano, que deveriam ser espalhadas pela cidade para uso público. Como o plano não foi aceito pela prefeitura holandesa, o Provos resolveu tocar o plano à sua maneira; reuniram mais de 50 bicicletas, pintaram-as de branco e espalharam pela cidade. A polícia apreendeu as bicicletas, alegando que elas não podiam ser deixadas pelo município sem estar cadeadas, e as devolveu para os Provos, que buscaram uma solução criativa para o impasse: colocaram cadeados em cada uma e pintaram a combinação do cadeado em preto no corpo de cada bicicleta (como dá para ver na imagem acima desse parágrafo).

_ Plano do Cadáver Branco;
Propunha que, a cada morte por atropelamento em Amsterdam, o assassino em questão, sob escolta da polícia, deveria esculpir no asfalto os contornos de sua vítima com formão e martelo, numa profundidade de 3cm, e preencher o espaço com argamassa branca. Desse modo, diziam os Provos, “os outros aspirantes a assassinos tirarão o pé do acelerador por um instante, ao se aproximar do funesto local“.

_ Plano das Galinhas Brancas;

Buscava uma reorganização da polícia de Amsterdam e propunha a transformação do policial em um trabalhador social. Para isso, tinha como objetivos que  a) que a polícia andasse desarmada e de branco, b) que fosse submetida à Câmara de Veradores, e não à Prefeitura, c) que cada municipalidade tivesse o direito de escolher o Chefe de Polícia democraticamente. O nome”galinha” é usado porque era com esse termo (“kip“, em holandês) que os Provos se referiam aos policiais, tipo o “porco” usado para o mesmo fim no Rio Grande e acreditamos que em diversos estados do Brasil.

_ Plano das Chaminés Brancas;
Queria a cobrança de multa para quem poluísse o ar com substâncias radioativas e tóxicas e a construção obrigatória de incineradores, além da pintura de branco (é claro) das chaminés dos maiores poluídores.

_ Plano das Mulheres Brancas;
Exigia a criação de clínicas públicas que oferecessem, de grátis, conselhos e contraceptivos para mulheres a partir dos 16 anos. E argumentavam também, para o bem do controle populacional, que era imprescindível para a sociedade que as mulheres não casassem virgens, e sim que experimentassem bem antes de casar e ter filhos.

_ Plano das Moradias Brancas;
Propunham que o Estado interviesse na especulação imobiliária, freando-a, e que os prédios desocupados – enquanto estivessem na espera de algum ação de seus donos ou mesmo do poder público – fossem disponibilizados gratuitamente para habitação temporária de quem precisasse.

JOGO BOM É JOGO RÁPIDO

Material da Campanha Provos para a Câmara de Amsterdam

A partir do crescente sucesso da ação do movimento – particularmente depois do casamento real da princesa Beatriz e do ex-nazista Claus von Amsberg, em 10 de março de 1966, onde os Provos, com suas bombas de fumaça branca, tomaram a dianteira dos protestos –  o movimento deixou de ser “underground” e tiveram suas idéias assimiladas por grande parte da população holandesa. Dentro do movimento, articulou-se a criação de um partido político, cujos líderes seriam alguns dos dirigentes da organização, que acabam candidatos para a Câmara de Vereadores de Amsterdam, numa campanha que é puro Provos, com sutiãs & janelas pintados com o número 12 da chapa, decorações natalinas disfarçadas de propaganda, esculturas florescentes e bonecos coloridos divulgando o “12”. Mesmo com tamanho jogo anti-político, e atrapalhados pelo fato de que só maioires de 23 anos votavam na Holanda da época, os Provos conquistam 2,5% dos votos e conquistam uma cadeira.

De Vries (de branco), o galã Provo que virou vereador

Bernad De Vries (na foto, à direita) é o escolhido. Seu comportamento na câmara é exemplar: veste-se sempre de branco, ocasionalmente pintando o rosto e as mãos da mesma cor, anda sempre descalço e inicia suas falas com um sonoro arroto. É  prova de que os Provos não estavam interessados e/ou não sabiam o que fazer com o poder. A partir das eleições e da desistência da vida política por De Vries (que vai tentar ser galã de cinema, onde teve poucas chances), ocorreram divisões no movimento e os líderes acabaram optando pelo seu fim. Sob a alegação de que os Provos eram “um grande choque” enquanto eram considerados anti-sociais, porém, assim que o sistema começou a acolhê-los, seu real significado dissipara-se, o grupo optou pela dissolução.

Mas, como bons provocadores que eram, sua despedida não passaria em “branco”. Foi espalhado um Boato Branco, dizendo que as universidades americanas tinham interesse em adquirir os “arquivos provo“, documentos que na verdade não existiam. A Universidade de Amsterdam, temendo que o “tesouro sociológico” (basicamente uma caixa de papelão com todos os números de Provo) pudesse desaparecer além mar, rapidamente fez uma oferta que os provos não poderiam recusar. E assim, tão rápido quando surgiu, dissipou-se o movimento Provo.

REPERCUSSÃO

Segundo Guarnaccia, a Revolta Provo – que durou efêmeros 2 anos, de 1965 a 1967 – foi o primeiro movimento em que os jovens, como grupo social independente, tentaram influenciar a política, fazendo-o de modo absolutamente original, sem propor ideologias, mas um novo e generoso estilo de vida anti-autoritário e ecológico. Caminhando contra a corrente do “cair fora” beat, pensavam em descaradamente permanecer “dentro” da sociedade, para provocar nela um curto-circuito”. À diferença do maio de 1968 na França, que queria levar a imaginação ao poder, o Provo utilizou a imaginação contra o poder ; semearam, por meio de imagens, as sementes de um novo modo de vida, um dos meios mais poderosos de influenciar pessoas.

Os Provos amam a vida, sua cidade, Amsterdam, e seus habitantes. Encenam exibições de tosse em massa contra os cigarros, o símbolo mais ‘evidente’ do consumidor sem escolhas, escravizado (…) agem contra a destruição de árvores e contra os jornais que fazem lavagem cerebral nas pessoas. Invadem os caminhões que transportam os rolso de papel para impressão e em seguida os desenrolam como tapetes nas ruas de trânsito mais intenso. (…)
Planejam uma cidade sem automóveis e propõem bindes gratuitos e a distribuição de 70 mil bicicletas ao dispor de todos os cidadãos. Querem que os agentes de polícia se tornem assistentes sociais e que no lugar de armas carreguem sacos brancos cheios de doces e frutas a serem distribuídos aos transeuntes”, San Francisco Oracle, Yes Provos, No Yankees (fac-símile, org. Allen Cohen, Regent Press, 1991)

Provo é uma imagem

Alguns projetos dos Provos vingaram e ainda hoje fazem parte da rotina de Amsterdam, como as bicicletas brancas e a liberalização da maconha. Além disso, os Provos tem muita cupla da cidade ser conhecida como “A cidade das bicicletas” e ter, em 2006, quase 500 mil bicicletas para uma população de pouco mais de 750 mil habitantes. O que parece permanecer, sobretudo, é semente de um outro modo de vida na sociedade holandesa, manifestada em falas como a desse artigo do conservador Telegraph, reproduzido no livro de Guarnaccia: “A sociedade holandesa nunca se recuperou das loucuras hippies, do flower power e das viagens para fora da realidade provocadas pela droga. Enquanto todas as sociedades ocidentais foram trazidas de volta à Terra, a sociedade holandesa ficou nas nuvens”.

Links
_ Além do livro de Guarnaccia, outra referência fundamental é esta matéria da revista High Times de janeiro de 1990, de Teu Voeten;
_ Colocamos o “Provos – Amsterdam e o nascimento da Contracultura”, de Matteo Guarnaccia, na nossa Biblioteca, em versão scaneada;


Agradecimentos
_ Aos textos do Gambiarre.org e do JorWikiUSP, do qual muitos parágrafos desse post foram inspirados e/ou plagiados;

Créditos das Fotos
International Institute of Social History (1, 2,5,7, 8, 10);
_ High Times (4, 6, 9);
_ Larqdesign (3);
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