Resultados da pesquisa por “situacionismo” – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Wed, 23 Jan 2013 16:43:36 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Resultados da pesquisa por “situacionismo” – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Arqueologia da reciclagem digital https://baixacultura.org/2013/01/23/arqueologia-da-reciclagem-digital/ https://baixacultura.org/2013/01/23/arqueologia-da-reciclagem-digital/#comments Wed, 23 Jan 2013 16:43:36 +0000 https://baixacultura.org/?p=9538  

 

Para dar sequência ao resgate da biblioteca rizomática (veja os outros textos), trazemos pra cá um artigo que, por que não dizer, virou quase um clássico das redes: a “cultura da reciclagem”, do jornalista/pesquisador/artista e professor da PUCSP Marcus Bastos.

O trabalho circulou pela primeira vez na seção Novo Mundo da revista Trópico, editada por Giselle Beiguelman (hoje editora da Select) e uma das principais revistas de arte contemporânea (e digital) na rede em inícios e meados da década de 2000. Uma segunda versão foi apresentada no NP de Semiótica do congresso da Intercom e uma terceira, da qual nos baseamos aqui, foi publicada no Rizoma em 1 de junho de 2005.

O artigo/ensaio é um tour de force, como se diz por aí, sobre a a reapropriação – ou reciclagem – na cultura contemporânea. Bastos busca a história do sampler e uma série de iniciativas realizadas até o início dos 2000 para sugerir que a reciclagem se insere progressivamente em setores sociais cada vez mais amplos e, também, como uma prática comum no universo das mídias digitais. Explica: “O símbolo de uma sociedade preocupada em preservar suas reservas naturais e reaproveitar os detritos sólidos não é o Memex, é o sampler“.

O certo pioneirismo em tratar desse assunto com uma abordagem acadêmica e multidiscplinar em inícios dos 2000 faz o texto ser, ainda hoje, uma referência importante para quem pesquisar e saber mais sobre o como a reciclagem – ou o remix, reapropriação, quer seja o nome – está fatalmente cada vez mais presente na nossa cultura.

Alguns dos exemplos citados parecem ultrapassados diante da proliferação do remix, mas aí também reside o valor “arqueológico” que o ensaio/artigo adquiriu hoje ao recuperar essas manifestações. Vale dizer que atualizamos algumas informações, destacamos trechos, buscamos imagens pra ilustração (a que abre o post é um clássico do “remix ativista” do Adbusters), colocamos alguns links (como os dos seminais textos sobre bricolage e sampler na história da arte) e outras pequenas arrumações para que o texto flua e funciona melhor. Boa leitura!

A cultura da reciclagem 

Marcus Bastos

O carrinho do supermercado raspa no canto do refrigerador e as latas de Pepsi twist chacoalham em loop sincronizado com o ritmo da música que escapa pelas frestas entre o fone e o ouvido propriamente dito. No apartamento, enquanto o telefone não toca e os arquivos no Shareaza não completam o destino até o HD, um ritual comum a adeptos de todas as tribos e sub-tribos espalhadas pelas ruas da cidade: separar o lixo orgânico, não-orgânico, o plástico, o metal, o papel. A cena, familiar em sua trivialidade, vai além da mera descrição de um sábado qualquer antes do sushi com saquê, depois cinema, depois balada. O texto que aqui se inicia é justamente uma tentativa de entender que relações são possíveis entre momentos cotidianos como o descrito e a formulação do conhecimento que circula nos diversos circuitos que o institucionalizam. É o retrato de um processo que envolve entusiasmo, decepção, rigidez, preguiça e outros. Sentimentos humanos, ocultos entre linhas que querem relacionar os vários estímulos que fazem o habitante das metrópoles contemporâneas pensar e agir assim ou assado. Para que serve, afinal, o conhecimento senão para amenizar o fato de que, segundo Kenneth Branagh, não existem adultos, apenas crianças com dívidas no banco.

A favor dessa relação estranha, um método esquisito que permite perceber como um dos grandes temas da crítica cultural contemporânea, o hibridismo das manifestações simbólicas, também pode ser aplicado ao estudo da fórmula de marketing preferida da indústria alimentícia, que inunda as prateleiras de supermercado com misturas pré-fabricadas de guaraná com laranja, suco-de-abacaxi com hortelã, doritos com bacon e outros primores de uma culinária tão artificial quanto a inteligência que os cientistas cognitivos buscam em suas pesquisas. A coincidência revela que há mais coisas entre o estado de um época e as várias formas de transformá-la em livros, CDs e DVDs, do que supõe a nossa vã — e às vezes pouco disposta a investigar o que acontece fora do mundo do pensamento reconhecido pelos pares — filosofia. Começa aqui o terceiro tratamento de um texto que é muito anterior à sua escrita propriamente dita.

Talvez a questão central nem mesmo esteja presente no eixo evidente de sua organização, o que ficou claro nessa oportunidade de voltar ao tema (1). Daí o gesto pouco recomendado de afastar do leitor o tema central do artigo, obrigando-o a leitura de uns poucos parágrafos resultantes da busca pelas motivações para a tentativa esboçada adiante, de associar o universo fugaz — intoxicado por modas e outras formas mundanas de preservar o imediato — das diversões, eletrônicas ou não, que fazem o fim-de-semana nas cidades do mundo, ao universo compenetrado — enrijecido por normas e outras formas livrescas de mediar o que se pretende preservado — das universidades e outras instituições dedicadas à construção, ao acumulo, à circulação dos saberes.

e talvez seja uma história chata, mas você não precisa ouvir, ela disse, porque ela sempre soube que ia ser daquele jeito”, disse Bret Easton Ellis [o mesmo de Psicopata Americano] em “Os jogos da atração“. Os livros sobre Internet e mídias digitais fazem referências constantes ao Memex e à Arpanet, assim como os livros de história contam invasões, batalhas e guerras. Mas a história das mídias digitais não precisa ser necessariamente o resgate das pesquisas financiadas pelo governo com fins militares, assim como nem sempre os livros de história precisam ater-se às grandes narrativas, deixando de lado fatos cotidianos igualmente significativos. Buscando as raízes da cultura digital em outras paragens seria possível encontrar inúmeras manifestações de igual importância histórica e maior relevância cultural (2).

A história da Internet é, por exemplo, a história de como vários atores da contracultura que se consolida dos anos 60 em diante optam por colocar suas idéias em prática na indústria então emergente dos computadores pessoais. O presente artigo sugere que a reciclagem, um dos exemplos de como o ideário dessa contracultura se insere progressivamente em setores sociais cada vez mais amplos, é uma prática comum também no universo das mídias digitais. O símbolo de uma sociedade preocupada em preservar suas reservas naturais e reaproveitar os detritos sólidos não é o Memex, é o sampler. Assim, parece razoável aproximar a linguagem digital do universo em que este se desenvolve, na construção das pequenas amostras de  pensamento desenvolvidas abaixo, para que o leitor combine da forma que achar mais interessante.

 

Uma breve história do sampler

Herdeiro do Fairlight CMI (imagem acima e como novidade apresentada na TV em 1980), um computador criado pelos australianos Kim Rydie e Peter Vogel em 1979, e aperfeiçoado na dança anônima da música eletrônica, o sampler é um aparelho que grava e permite a manipulação de amostras sonoras.

Com o sampler, compor torna-se também na música pop a arte de combinar sons e trechos de músicas. O procedimento remete às práticas da música eletroacústica, mas desenvolve-se com nome e atitude nos subúrbios das grandes cidades norte-americanas, sendo o rap nova-iorquino e a música criada para as warehouse parties (festas em armazéns abandonados precursoras das raves) que de Detroit as manifestações pioneiras. Em 1948 a palavra sample servia apenas para designar amostras colhidas em exames médicos e pesquisas qualitativas.

Sem saber que o termo em breve ganharia outros sentidos, Pierre Schaeffer fala em música concreta para descrever suas experiências na rádio francesa ORTF. No artigo “A experiência musical”, o compositor explica como “toma partido composicionalmente dos materiais oriundos do dado sonoro experimental /…/ não mais com relação a abstrações sonoras preconcebidas, mas com relação a fragmentos sonoros existentes concretamente, e considerados como objetos sonoros definidos e íntegros, mesmo quando e sobretudo se eles escapam das definições elementares do solfejo(3).

Além de facilitar a composição a partir dos sons, o funcionamento do sampler sinaliza para a possibilidade de explorar a re-utilização de materiais como técnica para produzir textos, imagens e música, e pode ser associado às diversas formas de colagem e apropriação produzidas na história da arte e da literatura. Essa relação já foi explorada em artigos como “On bricolage“, de Anne-Marie Boisvert, “Art history shake and bake“, de Sara Diamond, e na primeira versão deste artigo, publicado na revista Trópico sob o título Cultura Sampler (4).

Apesar de importante, por inserir o sampler num  contexto cultural mais amplo, a relação com manifestações semelhantes não esgota o assunto. Além disso, os exemplos descritos nos artigos em questão, mostram que o uso de amostras como forma de manipulação de linguagem em que há um novo tratamento de material previamente criado não se restringe à música, o que permite generalizar o conceito de sampler, especialmente quando se observa que o computador unifica as práticas de tratamento de mídias, na medida em que as manipula todas a partir do parâmetro comum do código binário. Mesmo em micros domésticos é possível converter praticamente qualquer produto cultural em arquivos que  podem ser armazenados, editados e distribuídos em formato digital. Nesse sentido, o scanner pode ser usado como um sampler de imagens, o OCR como um sampler de textos, o bloco de notas como um sampler de códigos fonte, as placas de captura de vídeo como um sampler audiovisual, e assim por diante.

Projeto Care, de Nelson Leirner; uma apropriação.

A apropriação e o remix

No universo musical, o novo tratamento dado ao material sonoro recebe o nome de remix. Em “Models of Autorship in New Media(5), Lev Manovich afirma que, nos últimos anos, a prática do remix ganha espaço fora do universo musical, apesar de não ser admitida abertamente. Para Manovich, o remix implica em um novo tipo de relação de autoria, resultado do diálogo assíncrono entre criadores, ainda que, em áreas como as artes visuais, o cinema e a literatura, o remix seja visto como violação de direitos autorais. Para preservar os direitos do autor, quando se escreve sobre as idéias de outra pessoa, é de praxe usar marcas textuais como: ainda segundo Manovich, fora do universo musical o termo mais próximo de remix é apropriação.

Ao contrário do que sugere o teórico russo, a apropriação e o remix têm finalidades bastante diferentes. A prática do remix se resume, na maioria das vezes, a um novo tratamento rítmico do material sonoro. Não acontecem grandes mudanças na estrutura melódica e harmônica da composição, geralmente re-embalada com fins de adequá-la às sonoridades predominantes nas paradas de sucesso ou nas pistas-de-dança. Isso não tira o mérito da prática, especialmente em casos em que há mais interferência no original, de que as 7 mixagens diferentes de Papua New Guinea, do FSOL, são um bom exemplo. Além disso, uma série de artistas começa a explorar, especialmente com a popularização das mídias digitais, formas alternativas de remix. É o caso dos trabalhos de Rick Silva, que mistura referências da literatura e música pop (6), e dos trabalhos audiovisuais de VJs como Alexis, e sua manipulação ao vivo de Cidade de Deus, ou Luiz Duva, que recriou o clássico Made in Brazil, de Letícia Parente, na programação do 14º VideoBrasil.

No caso da apropriação, ao contrário do remix, não há um novo tratamento de material produzido com fins culturais, mas recontextualização de objetos dos mais diversos tipos. Dois bons exemplos são as obras Projeto Care e Trabalhos Feitos em Cadeira de Balanço Assistindo Televisão. Nelas, Nelson Leirner recupera o imaginário do consumo e da cultura urbana, interferindo em objetos anônimos, como cartões de natal e latas de refrigerante. Ao fazê-lo, atribui uma assinatura aos mesmos, denunciando nos bastidores do mercado de arte um culto à personalidade ironicamente semelhante ao star system de Hollywood — mesmo que fundado em rituais completamente diferentes. Além disso, práticas comuns no contexto do situacionismo (7), como trocar os balões de HQs para subverter seu sentido, ressurgem na Internet, com o auxílio dos recursos de tratamento digital e distribuição possíveis (8).

Na literatura, a prática remonta a poemas como Um metro e meio de poesia (Gastão Debreix), Punk Poem (Edgard Braga) e Em Progresso (Tadeu Jungle). Neles, também ocorre a re-significação de objetos cotidianos (a fita métrica, o alfinete, a bandeira do Brasil). Mas, como poesia é feita em livro e livro se multiplica, o que era objeto único tirado do contexto vira página reproduzida, mesmo que artesanalmente.

Além disso, outra diferença entre a apropriação literária e a apropriação nas artes visuais é que a primeira pode se restringir ao plano textual. Ainda que isso aproxime a prática das diversas formas de intertextualidade, é preciso deixar claro que só há apropriação quando existe um reaproveitamento físico dos materiais que compõem o texto de partida. Um exemplo é o poema Cummings: Não- tradução (Paulo Miranda), em que o texto do poeta americano é transposto para as páginas da revista Artéria 2 por métodos gráficos.

A digitalização

As mídias digitais acentuam esse jogo de reciclagens, presentes de maneiras distintas na colagem, na apropriação e no remix. Isso fica claro pela quantidade de exemplos em que há novos tratamentos de material digitalizado, sejam clássicos da literatura (HyperMacbeth, música de Kid Koma, letras de William Shakespeare; ainda disponível na rede), obras importantes da história do cinema (Alpha Beta Disco: Godard Remix, do duo americano Drop Box), trilhas sonoras de videogame (Overclocked Remix, uma comunidade de trilhas de videogame), sites (o remix de ~Real para Jodi) e diagramas (complex net art diagram, a remix of mtaa’s simple net art diagram, de Abe Linkoln), entre outros.

A base dessa cultura é “invisível” para o usuário. É comum na programação — especialmente depois da popularização da programação orientada a objetos — a re-utilização/atualização de códigos-fonte. A própria lógica da indústria da informática é, assim, um bom exemplo de reciclagem. Basta substituir o número depois do nome de cada programa pelo nome do diretor de programação acompanhado da palavra mix, e tudo fica mais claro — para deleite do público e azar de quem for assinar o Windows (Plug-and-pray remix) e o Windows (Xtra Problemas Version)!

Mas reciclar produtos culturais não é exatamente como reciclar detritos sólidos ou programas de computador. Na reciclagem de lixo, o produto resultante será utilizado novamente, com poucos e declarados prejuízos em relação ao material não-reciclado. Na reciclagem de produtos culturais, há o risco de efeito inverso. Como o procedimento é amplo, podendo ser utilizado nos mais diversos contextos, serão consideradas pertinentes à cultura da reciclagem apenas as práticas criativas que exploram a materialidade das linguagens, manipulando com postura crítica e/ou irônica o material tratado, especialmente nos casos em que isso acontece em ambiente digital.

Um bom exemplo é o trabalho do site plagiarist.org, que usou o programa em Perl Travesty para realizar o recente Travesty Corporate PR Infomixer, repetindo a estratégia do mais antigo Plagiarist Manifesto. Ambos se apropriam de trechos de texto combinados por meio de um algoritmo que os rearranja com base na freqüência em que as palavras aparecem no texto de partida. Além deles, destaca-se o pioneiro Reciclador Multi-Cultural (ainda em funcionamento), em que um programa seleciona imagens de câmeras web indicadas pelo usuário, para compor uma imagem aleatória. Nos dois casos, o algoritmo de programação é o elemento central dos trabalhos. Além do caráter modular, permutacional e instável da Internet, os trabalhos tematizam ainda o jogo econômico do capitalismo coorporativo e, especialmente, seus reflexos nas práticas de plágio e proteção dos direitos autorais (9).

Reciclador multicultural

Mais próximo da apropriação, errata :: erratum (DJ Spooky) é uma metáfora do remix como arte de girar discos, e homenagem cinética à técnica do scratch. Inspirado em Anemic Cinema (Marcel Duchamp), o trabalho oferece uma versão digital dos discos originais, para que o usuário gire e combine conforme os movimentos de mouse possíveis no arquivo de Flash disponível na galeria digital do Museu de Arte Contemporânea de São Francisco (EUA). Apesar das implicações institucionais passíveis de discussão no gesto, especialmente pelo fato de um site não depender do espaço do museu para ser veiculado, o trabalho de Spooky não foi objeto de polêmicas tão contundentes quanto as que envolveram os trabalhos de Duchamp.

Sinal de que a cultura contemporânea já absorveu práticas similares. Há boas discussões sobre esse paradoxo no artigo “Contra o Pluralismo”, de Hal Foster (10). O tema aparece, ainda que em outro contexto, quando Naomi Klein descreve no seu “Sem Logo“, as diversas formas que a indústria da cultura encontra para neutralizar as manifestações que desafiam os discursos dominantes, sempre transformando em moda, tendência ou estratégia de marketing tudo o que desafia o coro dos contentes (11).

Outro aspecto dessa cultura de reciclagem aparece em trabalhos que lidam com o imaginário do nomadismo. Um aspecto sutil dos movimentos constantes de mídias e códigos é sua migração entre sistemas e as questões que ela acarreta. Assim, é sintomático que uma artista com trabalhos pioneiros no universo do efêmero e do reciclável, como é o caso de Giselle Beiguelman (O livro depois do livro), tematize em seguida o universo do nomadismo contemporâneo.

Ainda que a maior parte do fluxo atual ainda seja resultado de transmissão de dados por pessoas presas ao escritório pelos fios do computador de mesa, os dispositivos móveis ganham cada vez mais espaço. Esse trânsito aparece na evolução tecnológica e na temática de Leste o Leste?, Egoscópio (imagem acima) e Poetrica, trilogia em que Beiguelman explora painéis eletrônicos para orquestrar dinâmicas coletivas cada vez menos presas ao computador pessoal.

Não importa a sensação de que “nos veículos de massa, esses tipos de apropriação são tão ubíquos que parecem não ter agentes”, nas palavras de Hal Foster. No entorno do universo inaugurado pelo sampler, as práticas de re-utilização, apropriação e reciclagem de mídias invertem o lugar do anônimo. Nesse contexto, reciclar é marca de uma sociedade em que o excesso e a velocidade interessa.

Notas

1. O texto A cultura da reciclagem teve uma primeira versão publicada na seção Novo Mundo da revista Trópico, editada por Giselle Beiguelman, e uma segunda versão apresentada no NP de Semiótica do Intercom, coordenado por Irene Machado. Agradeço a ambas e a Lúcia Santaella pelas oportunidades e estímulos constantes à acreditar na força das pequenas polaróides cotidianas, desvios e ajustes do olhar em busca de imagens mais definitivas.
2. O livro depois do livro (São Paulo, Peirópolis, 2004), de Giselle Beiguelman, é um bom exemplo de reflexão sobre a Internet pautada por preocupações desvinculadas dos usos conservadores da rede, conforme apresentação mais extensa na resenha “Está provado que já é possível filosofar em digital”, publicada pelo autor do presente texto na revista Galáxia n.7 (São Paulo, Edusp,2004).
3. Cf. Menezes, Flô [org.]. Música Eletroacústica. História e Estéticas. São Paulo: Edusp, 1996.
4. Os textos de Boisvert e Diamond foram publicados na Horizon Zero n. 8, a primeira versão do presente artigo publicada na Trópico não está mais disponível.
5. http://www.manovich.net
6. os sites Cuechamp e DJ RABBI.
7.  “A miséria do meio estudantil considerada em seus aspectos econômico, político, psicológico, sexual e, mais particularmente intelectual, e sobre alguns meios para remediá-la”, in: Situacionista. Teoria e Prática da Revolução. São Paulo: Baderna, 2002.
8. Cf. “The remix of politics”, de Rick Silva.
9. Para um discussão mais extensa sobre o uso de códigos no trabalho da Plagiarist.org e outros expoentes da cultura digital, ver O livro depois do livro, de Giselle Beiguelman (São Paulo: Peirópolis, 2004).
10. In: Foster, Hal. Recodificação. Arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996.
11. Cf. Klein, Naomi. Sem logo. A tirania das marcas em um planeta vendido. São Paulo: Record, 2002.

 Créditos: Adbusters, Sampler, Leirner, Art, recycler, Egoscópio.
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Pequenos grandes momentos ilustrados da história da recombinação (1): Détournement https://baixacultura.org/2010/05/10/pequenos-grandes-momentos-ilustrados-da-historia-da-recombinacao-1-detournement/ https://baixacultura.org/2010/05/10/pequenos-grandes-momentos-ilustrados-da-historia-da-recombinacao-1-detournement/#comments Mon, 10 May 2010 11:23:50 +0000 https://baixacultura.org/?p=2886 .

Desde o início do BaixaCultura, temos falado de alguns tópicos que envolvem o histórico da recombinação voltada à arte e a cultura. Reuben comentou aspectos específicos dessa questão na tradução do pequeno manual do festival do plágio (parte I e II), um evento interessantíssimo criado por Stewart Home na Inglaterra dos anos 80 e influenciado pelo situacionismo, punk, neoísmo e outras vanguardas artísticas da qual o próprio Home tratou em seu livro “Assalto à Cultura“, um levantamento histórico e sarcástico das vanguardas artísticas do século XX.

Como você deve supor (ou não), muito se tem conversado sobre as mudanças que a rede e o compartilhamento de arquivos trazem para a sociedade, mas muito pouco tem se tratado das práticas criativas ligadas ao roubo que a rede também potencializa demais, ao colocar a dois toques do mouse um mundo de material prontinho para ser baixado, visto e usado como bem se entende (ou não, se você não quiser se incomodar com os barões do copyright). Como dissemos neste post, é natural que o debate mantenha o foco na recepção, pois as novas práticas de distribuição e consumo de cultura dizem respeito a toda a sociedade, enquanto que as práticas criativas dizem respeito a um grupo ainda seleto de pessoas.

Pensando nisso, começamos nesse post uma nova trincheira pro BaixaCultura, a de resgatar algumas práticas (momentos, charadas, causos) criativas do século XX ligadas ao uso – e roubo –  de outras criações. Existiram diversas formas e ocasiões de apropriação indébita de obras de outros artistas neste século passado, e, ademais de algumas práticas e causos serem bastante conhecidos hoje (o remix e, mais recentemente, o mashup estão aí para mostrar), existem outras tantas que pouco saíram dos guetos artísticos. Começamos nosso “resgate” justamente com uma dessas práticas relativamente pouco conhecidas, o chamado “détournement”.

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A origem

Détournement é uma palavra francesa que significa desvio, diversão, reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, seqüestro, ou virar ao contrário do curso ou propósito normal. Ela (a palavra) foi apropriada para designar uma prática criativa pelo movimento situacionista, especialmente por dois de seus líderes, Guy Debord e Gil J. Wolman. Em 1956, Debord e Wolman publicaram um guia para um possível usuário do détournement numa revista surrealista belga chamada Les Lèvres Nues #8, um texto (aqui a sua tradução para o português, em duas versões) onde introduziam, conceituavam e abusavam da prática – claro que com muito sarcasmo e ironia, talvez a fim de que ninguém levasse totalmente a sério aquilo que eles diziam.

O que quer dizer

Poderíamos falar que o détournement é uma variação em um trabalho já conhecido que produz um significado antagônico ao original. As duas leis fundamentais da prática apontadas inicialmente seriam a perda de importância de cada elemento “detourned” (ou “detunado”, numa tradução literal para o português), que pode ir tão longe a ponto de perder completamente seu sentido original, e, ao mesmo tempo, a reorganização em outro conjunto de significados que confere a cada elemento um novo alcance e efeito. No guia produzido pelos situacionistas, são apresentados dois tipos principais: os menores, onde é feito um desvio de um elemento que não tem importância própria, e que portanto toma todo seu significado do novo contexto onde foi colocado; e os “enganadores“, onde é feito o desvio de um elemento intrínsecamente significativo, o qual toma um dimensão diferente a partir do novo contexto.

Exemplos

Guy Debord, um dos maiores e mais criativos plagiadores que o século 20 já viu, se tornou conhecido por sua atuação teórico-prática no Situacionismo e sobretudo pelo livro A Sociedade do Espetáculo, um clássico nos cursos de comunicação Brasil afora. No livro, Debord começa com um exemplo de détournement ao apresentar, já no primeiro parágrafo da obra, uma cópia de O Capital (de Karl Marx). Dá uma olhada:

Debord: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. “
Marx: “A riqueza das sociedades em que domina o modo-de-produção capitalista apresenta-se como uma “imensa aumulação de mercadorias”.
Sem entrar em muitos detalhes, a ideia de Debord era mostrar que a etapa do capitalismo em que vivíamos pelo acúmulo de mercadorias havia passado, e chegara o tempo em que passaríamos a acumular apenas imagens de mercadorias – espetáculos.  Assim que, ao invés de citar o parágrafo original e discorrer sobre ele até chegar a uma conclusão, procedimento tornado comum na academia, Debord julgou que seria melhor a substituição direta do que já não servia.
Um exemplo gráfico está aqui abaixo, feito por Francis Bacon a partir de uma pintura clássica do pintor Diego Velásquez, conhecido retratista espanhol do século XVII:

Bacon, Study after Velázquez’s Portrait of Pope Innocent X (1953)

Velázquez, Retrato do Papa Inocêncio X

Imagine que um observador mais atento vai ver que a obra de Bacon precede em três anos o lançamento do guia para o usuário de Debord e Wolman. Isso é mais uma prova de que a manifestação do détournament está longe de ser algo original, no sentido de ter sido criado pelos dois situacionistas franceses. Ela é, sim, mais uma manifestação de algo que vem se fazendo há muito tempo e que os dois, como bons plagiadores que foram, resolveram agrupar sob alguns conceitos e preceitos a fim de que pudesse chamar atenção para o uso do roubo criativo na prática artística.

E hoje?

O détournement foi algo desenvolvido nos longínquos anos 50, década em que – bueno, não é nem preciso dizer o quão mais díficil era o acesso à cultura naquela época, não?. Atualize para o século XXI as possibilidades que a prática do détournement permite, e tu tem um espectro criativo gigantesco a ser habitado e re-habitado e transformado no que tu quiser.

Engraçado é que, ainda hoje, assim como Debord e Wolman apontavam já na década de 1950, é na indústria do marketing (e do anti-marketing) que estão os melhores exemplos desse tipo de desvio criativo. São muitas as manifestações desenvolvidas pelo Adbusters, por exemplo, coletivo internacional (com sede no Canadá) que tem chamado a atenção para o absurdo do consumismo em publicações como essa aqui, onde Obama é o palhaço da questão eco-psicológica global, ou nessa imagem abaixo, uma crítica pesada à maneira como a famosa Nike põe seus tentáculos em todo o canto do planeta:

Essa prática de subversão de propagandas corporativas – um caso de détournament aplicado à propaganda, digamos  – é tão usual que tem até um nome próprio para designar, culture jamming. São tantos os exemplos de jamming que vamos deixar para mostrá-los e comentá-los em outro post. Por hora, fiquemos com uma amostrinha curiosa, vinda de Londres:

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Música, literatura, cinema, fotografia, artes visuais, propaganda: teríamos mais uns quantos exemplos a serem mostrados de práticas ligadas ao détournement e, em uma esfera maior, ao plágio criativo. Tu mesmo deve conhecer vários, a começar pelas inocentes camisetas de turma de faculdade que se apropriam de logomarcas conhecidas até uma estranha frase que tu leu e pensou já ter visto em outro lugar, ligeiramente modificada.

Ao contrário do plágio praticado por pura falta de talento, a ideia do plágio criativo – e do détournement, me arrisco a dizer – funciona mais para revelar do que para ocultar suas origens. Ele talvez seja uma forma de entrar diretamente no longo diálogo do conhecimento, de expor suas referências e mostrar à todos o que tu quer e o que tu não quer absorver dessas referências – e da união do que tu aproveita de um lado com o que tu aproveita de outro é que nasce algo diferente. Parece sempre ter sido assim a criação, e barrar o uso dessas referências é, em todos os sentidos, limitar a criatividade.

No fim de sua vida, Debord passou a desistir do détournament, por acreditar que esse tipo de técnica seria adequada apenas a sociedades que fossem capazes de reconhecê-la. Será que hoje, com o advento da internet e toda a enorme cultura que está disponível à todos que tem acesso à rede, ele faria o mesmo?

Por questões de tamanho, deixaremos esta e outras perguntas e exemplos para as próximas edições desse post, que já ficou maior do que o esperado e é bom que termine por aqui.

Créditos: 1, 2, 3, 4, 5.


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https://baixacultura.org/2010/05/10/pequenos-grandes-momentos-ilustrados-da-historia-da-recombinacao-1-detournement/feed/ 4
Stewart Home e o Festival do Plágio (I) https://baixacultura.org/2009/04/07/stewart-home-e-o-festival-do-plagio-i/ https://baixacultura.org/2009/04/07/stewart-home-e-o-festival-do-plagio-i/#comments Tue, 07 Apr 2009 20:00:09 +0000 https://baixacultura.org/?p=1630 home

Cada vez mais me convenço da necessidade de discutir por aqui algo que, superficialmente, apenas tangencia a proposta geral do blog — o conceitos e os desdobramentos da noção de plágioSuperficialmente porque, como já mencionei antes, os debates em torno da cultura livre normalmente tocam apenas de raspão nas técnicas criativas, na produção cultural, abordando mais fartamente o que se refere ao consumo e à distribuição de produtos culturais.

Justificando muito rapidamente: as mesmas tecnologias que nos levam a conversar sobre novos modos de compartilhar informação cultural colocam em relevo práticas criativas ligadas ao roubo — como o sampler, o remix, ou a famosa ‘citação’ no cinema. Todos estes conceitos são formas brandas de se referir a um mesmo hábito: o plágio, essa palavra estigmatizada que alimentou uma cacetada de grandes manifestações artísticas ao longo da história, e que nos ajuda tanto a relativizar o que consideramos ‘autoria’ quanto, consequentemente, os modos de regulamentar a autoria. É dentro desse balaio que jogo os dois posts que publicarei na sequência, partes Um e Dois de um trabalho do Stewart Home.

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Entrei em contato com a obra de Stewart Home através do fundamental Assalto à Cultura, livro em que Home revisa dezenas dos movimentos radicais que contribuíram para tornar a cultura do século 20 menos careta, do surrealismo ao punk, passando por vários grupos menores quase desconhecidos fora da Europa.

O próprio Home integra o time de falsários, picaretas e demolidores de galerias de artes que atravessou gerações do século passado e chegou neste, firme, forte e cheio de cara de pau. Home é herdeiro de uma série de práticas que nos remetem ao situacionismo e a Dada, por exemplo, entre as quais a crença na indistinção entre artista e público, e a radicalização da visão social da arte, o desinteresse pela estética pura e a atuação num sem-fim de linguagens, da performance à literatura, da música ao vídeo.

plagiarism

No fim da década de 1980, Home e um punhado de malucos organizou o Festival of Plagiarism, Festival do Plágio, cuja história relatou num pequeno panfleto, que começo a traduzir hoje para o BaixaCultura.

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Acontece o seguinte: o autor começa do começo, e o começo não é exatamente o festival. A primeira parte do texto elenca uma série de eventos (exposições, encontros, amizades) que desencadearam o Festival do Plágio, e em diversos trechos tende à chatice das infindáveis listas de nomes. Confesso que pensei duas vezes antes de seguir a cronologia, e quase publico de cara a segunda parte da obra. Mas, diabos, vamos lá.

original

Mérito: esta introdução põe na roda uma porrada de nomes e eventos (ao menos para mim) completamente desconhecidos. Qual a graça disso? Mostrar que o que se defende por aqui não é uma proposta maluca nem nada, mas um procedimento cultural que nunca deixou de ser aplicado na prática, ao contrário do que eventualmente nos narra a grandiosa (bocejo) história da Arte. Demérito: quem leu Assalto à Cultura sabe que, tanto quanto pelas histórias ali relatadas, o livro vale pelo sacaníssimo sarcasmo que permeia toda a narrativa, e que não alivia pra ninguém. Bem, seria fantástico se Home conseguisse manter a mesma dose de humor maldoso ao relatar sua própria experiência na confecção do Festiva do Plágio. Não consegue. O texto é geralmente sério e, em função disso, os poucos momentos bem-humorados quase passam batidos.

Depois de todo este desencorajamento, aceitem a primeira parte da tradução como, sei lá, registro historiográfico. Prometo um pouquinho mais de diversão na segunda parte.

[Reuben da Cunha Rocha.]

Eventos que levaram ao Festival do Plágio

 Stewart Home

Tradução: Reuben da Cunha Rocha

O Festival do Plágio nasceu de uma série de colaborações prévias. Obviamente, o esquema que se segue exclui um bom número de elementos importantes (isto é: está focado em exibições, festivais e performances, e ignora fartamente a influência de publicações como Variant, Smile, Edinburgh Review etc.).

Neste ensaio, o 8º Festival Internacional do Apartamento Neoísta [Eighth International Neoist Apartment Festival] (Londres, 21 a 26 de maio de 1984) funciona como ponto de partida ‘ficcional’. Até – e durante – sua realização, Pete Horobin, Stefan Szczelkun, Mark Pawson e eu nos conhecemos (entre outros). O Festival do Apartamento consistiu sobretudo em performances fortemente influenciadas pelo Fluxus e pelo futurismo. O Neoísmo sofreu (pelo menos parcialmente) uma mudança de direcionamento a partir de meu subseqüente envolvimento com o grupo. O movimento (ou parte dele) incorporou minhas (nada originais) idéias sobre o plágio como técnica criativa. Simultaneamente, Pete Horobin fez uma tentativa, com minha ajuda, de divulgar o nome Monty Cantsin como identidade múltipla a ser adotada por todos os membros da rede neoísta.

Na época (maio de 85) em que surgiu, o ‘Iconoclasm’ – uma instalação rudimentar feita por Malcolm Dickson, Gordon Muir and Peter Thomson (Transmission Gallery, Glasgow) – não tinha qualquer relação direta com o festival neoísta em Londres.  Embora a exibição consistisse basicamente em pinturas e desenhos, eles não foram simplesmente pendurados na parede na galeria. Ao contrário, foram instalados de maneira a expor o fato de que qualquer organização pictórica carrega uma carga cultural (e não é – como nos quer fazer crer o establishment da arte burguesa – um meio natural de disposição de objetos neutros).

Entre os envolvidos na exposição ‘Our Wonderful Culture’ [‘Nossa Formidável Cultura’] (Galeria Crypt, Londres, dezembro de 85) estavam Stefan Szczelkun, Hannah Vowles, Tom McGlynn, Glyn Banks, Ed Baxter e Simon Dickason. Durante os eventos ocorridos na exposição, eu conheci e me tornei amigo de Baxter, Dickason, Vowles e Banks. Logo em seguida nós começamos a discutir a possibilidade de organizar juntos uma mostra coletiva.

De volta a Glasgow, Dickson, Thomson e Simon Brown se ocupavam em organizar a ‘War Of Images’ [‘Guerra de Imagens’]. A exposição – ocorrida em janeiro de 86 – dividiu-se entre a Glasgow School of Art e a Transmission Gallery. O evento reuniu as polêmicas visuais de dúzias de jovens escoceses (entre os quais Muir e William Clark), cujo trabalho se opunha teórica e praticamente tanto ao bem-sucedido estilo de pintura da New Image Glasgow quanto à cultura dominante em geral. Dickson, tendo conhecimento de uma revista que eu havia editado e publicado à época, me enviou o material de divulgação da mostra, e incluiu meu nome na mailing list da Transmission. Assim se estabeleceu o contato entre Londres e Glasgow! Enquanto isso, Szczelkun e eu (assinando como ‘Karen Eliot’) participamos da exposição ‘The Business Of Desire’ [‘O Negócio do Desejo’], na DIY Gallery, Londres, maio de 86. Meu trabalho consistia em três afirmações ‘contra o desejo’: ‘O desejo é o espaço entre a repressão e a liberdade através do qual o capital primeiro penetrou seus sujeitos colonizados’; ‘A separação entre “sujeito” desejante e “objeto” desejado é a materialização da ideologia capitalista; e ‘A destruição do desejo é a primeira tarefa daqueles que buscam um retorno aos prazeres da unidade’. Estas declarações foram montadas sob o desenho de um braço dividido em três seções; o conteúdo de uma seringa (visível através dos três painéis) a ponto de ser introduzido na parte inferior do membro. Como contribuição de Baxter e Szczelkun havia um texto em formato de jornal chamado ‘Bypass Control’: ‘O glamour interpreta os desejos de todos os nossos sentidos como imagem. A sexualidade cessa de existir como prazer táctil e se torna análogo do Poder. O sexo se torna uma cena do poder, uma luta pelo poder que não existe: uma luta para produzir relações de poder. A maquinaria da opressão lança sua força invisível sobre todas as nossas funções humanas…’

O texto completo foi publicado no livro Collaborations, editado por Stefan Szczelkun (Working Press, Londres, 1987). Denise Hawrysio também participou da exposição, e lá conheceu Szczelkun. Uns bons seis meses se passaram antes que me falassem dela, e tão logo isso aconteceu eu a apresentei a Baxter.

Preparamos uma solicitação para expor na BookWorks (Londres) –  Baxter, Szczelkun, Vowles, Banks e eu -, mas a condição financeira precária da galeria impediu que a exposição se realizasse. A mostra deveria dar continuidade às idéias com as quais lidamos em ‘The Business Of Desire’. Entre os objetos a serem expostos havia um trabalho gráfico de minha autoria chamado ‘Destruction of Glamour/Glamour of Destruction’ [Destruição do Glamour/Glamour da Destruição].

Várias das idéias para a mostra na BookWorks foram subsequentemente utilizadas numa instalação coletiva ocorrida em Londres, no Chisenhale Studios, intitulada ‘Ruins of Glamour/Glamour of Ruins‘. Esta exposição foi organizada por Stefan Szczelkun, e ocorreu em dezembro de 86. Somados aos que estiveram no projeto abortado da BookWorks estavam os trabalhos de Gabriel (Gabrielle Quinn), Andy Hopton, Simon Dickason e Tom McGlynn. Duas idéias-chave delinearam a forma final da instalação. A primeira foi a de que o trabalho deveria nascer da colaboração orgânica entre os participantes; a segunda foi a de que o público deveria ser levado a reagir à galeria como espaço arquitetônico e sítio de poder. Adotamos um procedimento meio burocrático para atingir estes objetivos; com exceção de Tom McGlynn (que chegou de Nova Iorque apenas na véspera da instalação da obra), os participantes se encontraram regularmente para debulhar suas idéias. Uma descrição da mostra foi incluída no catálogo que acompanhou a exibição seguinte (Desire In Ruins, Transmission, Glasgow, maio de ’87): ‘Espectadores adentrando o Chisenhale Studios, Londres, durante a mostra ‘Ruins of Glamour/Glamour of Ruins’, tiveram a visão ofuscada por um holofote. Havendo uma parede à esquerda, foram forçados à direita. Eles se viram então adentrando uma espiral de carvão amontoado. Qualquer passo além do limite da espiral era impedido por afiados pedaços de madeira. Similarmente, não era possível pisar no ponto da espiral onde o holofote estava instalado. Os espectadores foram a partir daí forçados a pisar sobre a espiral num ponto logo à frente do holofote. Ao darem as costas à luz, eles se perceberiam no melhor local de observação tanto da mostra quanto dos demais espectadores (em especial os que estavam entrando na galeria)’. A exposição foi destruída em menos de uma semana. Seguiu-se um debate feroz sobre mantê-la aberta ou não. Particularmente, Szczelkun acreditava que, apesar dos graffitis e da destruição das obras, deveria ser oferecido ao público o que restara da mostra. No entanto, após muita discussão, decidiu-se pelo fechamento da exibição. Se a galeria tivesse permanecido aberta, o dinheiro que pedimos ao seguro pelos ‘danos’ das obras teria sido posto em perigo. Vowles e Banks se mantiveram particularmente intransigentes neste ponto, e insistiram em que nada fosse removido da galeria (inclusive uma extensão elétrica que Szczelkun queria usar) até que a companhia de seguros dissesse que tínhamos permissão para tal. Deve ser notado em relação a isso que a galeria nos encorajou/pressionou a aceitar o fechamento da exibição. Independentemente de qualquer coisa, este fechamento permitiu que eles agendassem a instalação de um novo sistema de iluminação na galeria. A Chisenhale até abriu mão dos 25% do seguro a que teria direito (coletados como comissão!), mas ainda levou uma quantia substancial para redecorar o ambiente. 1. Quando a instalação foi destruída, Graham Harwood e eu (nós nos conhecemos através de Szczelkun) começamos a organizar o Festival do Plágio. Três meses depois, uma obra coletiva chamada ‘Our Wonderful Culture II – Voyage’ foi apressadamente levada a público por Hercules Fisherman, Fisherman Studios, Londres. A exposição durou duas semanas e meia, em março e abril de 87. Entre os autores estávamos eu (assinando com Karen Eliot), Szczelkun, Baxter, Hopton, Gabriel, Dickason, Harwood, Karen Strang e Graham Tansley. Como na primeira ‘Our Wonderful Culture’, esta mostra possuía uma diversidade eclética de trabalhos. No entanto, por conta da falta de organização (…), a mostra não encontrou o mesmo sucesso de crítica que a anteriormente realizada na Cript. Ao mesmo tempo, Malcolm Dickson e Gordon Muir exibiram conjuntamente a instalação ‘Iconoclasm’ na Transmission Gallery, em Glasgow. O foco do trabalho de Dickson era a transmutação de um slogan do Maio de 68 (substituindo a palavra ‘Beach’ por ‘Sewer’ em ‘Beneath The Cobble Stones The Sewer’). O slogan se referia simultaneamente à derrocada da revolta de 68 e ao fato de que havia um cano sob o chão de pedra da galeria. (…) A obra de Muir era composta por pinturas e desenhos – muitos dos quais continham citações e referências a bandas punk e pós-punk (…).

Logo depois outra mostra coletiva, ‘Desire In Ruins’ [‘Desejo em Ruínas’], aconteceu na Transmission Gallery, como parte do Glasgow May Festival. A exposição foi organizada por mim, Ed Baxter, Malcolm Dickson e Carole Rhodes. Havia trabalhos meus (assinando como Karen Eliot), de Baxter, Banks, Dickason, Hopton, Vowles e Szczelkun, que de várias maneiras desenvolviam os temas trabalhados nas exposições na DIY e na Chisenhale. Alan Robertson e David O’Vary (em resenha nunca publicada) assim descrevem a mostra: “Olhando através das pesadas grades que protegem as janelas da Transmission é possível ver uma superfície coberta de terra sobre a qual se encontram uma galinha de borracha e vários outros objetos, inclusive um piano de brinquedo cujas teclas foram violentamente arrebentadas. Ao entrar, você se percebe no meio da caverna de imagens e objetos de Aladdin, iluminada por um único holofote. Sua presença se faz imediatamente conhecida pelo barulho feito ao pisar nas latas de cerveja espalhadas pela entrada (reflexo de uma cultura bêbada em ruínas, talvez?). Colocando-se frente à luz para entrar no espaço, interrompe-se a iluminação e cria-se um peep-show sinistro e esquálido para os demais. O lugar é entulhado de objetos, remanescentes das liquidações dos supermercados. Imagens do Papa em ornamentos de plástico, garrafas de ‘Liquid Sky’, anúncios de produtos para queda de cabelo, papéis escritos pregados na parede, bonecas de plástico, camisinhas cheias de certa substância branca, uma garrafa de ketchup. Objetos tirados do lixo que funcionam como ícones da cultura da comodidade, da imagem e do desejo. Ocupando boa parte da galeria há uma instalação feita de bambu, papelão, cabos, fios e coisas do tipo. Empalada e estirada numa das varas há uma pele de leopardo feita de nylon, através da qual as varas cutucam pontos estratégicos…’. Os fundos da galeria foram separados para uma investigação visual dos elos entre sexualidade e infância que haviam sido apresentados no catálogo da ‘Glamour’ (‘o adulto glamoroso é modelado na criança idealizada’). Dois trabalhos lidaram mais diretamente com o tema. Luz ultravioleta iluminando uma imagem estereotipada de um caubói (nem criança nem adulto, umas espécie de clone gay), tirada de um livro de pintura infantil e reproduzida em tamanho real na parede da galeria. A peça foi chamada de ‘Kind Pride’ [‘Orgulho Terno’] (‘kind’ é um termo adotado por alguns pedófilos para se descreverem positivamente). Outra parede exibia duas crianças nuas de mãos dadas (imagem tirada de um cartão postal livremente comercializado). Balões cheios de tinta branca foram colocados ao redor da imagem (para serem abatidos à bala, obliterando assim a visão das crianças). A mesma imagem foi usada em cartazes de divulgação da mostra, o que resultou em ameaças de processo policial.

Em setembro de 87, Dickson expôs uma vídeo-instalação chamada ‘XS’, como parte da Smith Biennale, na Smith Art Gallery, Stirling. Uma versão menos ambiciosa da instalação (sem monitores de TV) serviu como contribuição de Dickson para o Festival do Plágio; o filme que havia sido projetado na multi-tela como parte do trabalho foi exibido num único monitor durante uma das noites do festival. Em novembro de 87, Dickson exibiu outra vídeo-instalação – ‘Arival/Departure’ – como parte da AVA (Audio Visual Experimental) em Arnhem, Holanda.

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Sim! Por trás desta imagem há um conceito

Por dizerem respeito a toda a sociedade, são as novas práticas de distribuição e consumo de cultura que têm estado na parte mais visível da demanda por uma revisão nas leis de direito autoral. Afinal de contas, estes pontos da conversa falam de uma intrincada cadeia econômica que inclui potencialmente qualquer pessoa. Há, no entanto, um debate que corre paralelamente  a este, e que trata de uma revisão igualmente importante para o contexto cultural em que vivemos. A revisão da ideia de autor, e do que consiste seu trabalho.

A arte é um campo cultural dos mais ideológicos, permeado de ingenuidades e mitos que têm tudo pra parecerem perfeitamente naturais, mas que uma análise histórica mesmo superficial apontaria como construções recentíssimas. É possível usar como exemplo a idéia de “novidade” na arte. Make it new, o slogan preferido de Ezra Pound, um dos mais influentes poetas do modernismo norte-americano, tem influenciado gerações de criadores por muitas décadas. Original seria aquilo que apresenta certo grau de novidade, e o papel do autor seria introduzir informação nova no tecido da cultura — informação (arte) que seria fruto do que os românticos chamaram inspiração, posteriormente substituída no imaginário artístico pelo trabalho.

No entanto, historicamente a novidade é um valor moderno — da era moderna, da arte moderna. Nós aprendemos na escola que a cultura romana — sua poesia, seus deuses — foi em boa medida uma adaptação da cultura grega. Da mesma forma, muito da tradição japonesa é herança da cultura chinesa. E nada disso é demérito aos olhos de quem se insere ou inseria nestes sistemas culturais. A educação artística mais antiga passa pelo aprendizado das formas, e o bom artista é quem as domina. Quando a modernidade instaura o “novo” como um valor artístico, a relação do criador com as formas e gêneros passa a ser de superação.

Será por acaso que essa mesma modernidade é a etapa histórica do desenvolvimento do capitalismo, e será que não há qualquer correspondência entre o desejo de novidade da arte moderna e o desejo de novidade da economia de mercado, onde os produtos são cada vez mais velozmente substituídos por outros com aparência de novo? É evidente que a arte moderna produziu obras grandiosas, como a do próprio Pound, e apontar suas ideologias não significa rejeitar sua vanguarda. Significa mostrar que, apesar do apego que a arte possui em relação a suas próprias mitologias, uma simples mudança de perspectiva pode revelar o que há de ideológico em suas crenças.

Político como todos os outros campos da cultura, o campo artístico cria seus mecanismos de defesa e preservação. Os questionamentos levantados nos parágrafos acima têm sido abordados há mais de um século por correntes mais radicais de artistas e pensadores, que vêm apresentando propostas não apenas no campo conceitual, mas na prática criativa, introduzindo conceitos “malditos”, como por exemplo o plágio, no território da criação. Boa parte destes pensadores, no entanto, passam longe dos holofotes da cultura, e embora por vezes seus nomes sejam conhecidos (os surrealistas, por exemplo, fazem parte desse grupo), a radicalidade de suas práticas ainda não foi devidamente assimilada.

É a estes autores que o primeiro parágrafo de As vantagens financeiras do anticopyright faz referência. E ao próprio Critical Art Ensemble, cuja obra se insere nesta longa tradição de roubo e apropriação cultural. Embora eu tenha no último post esboçado uma reflexão sobre outros aspectos do texto, me parece de alguma utilidade comentar antes estas questões. Artistas de rap e hip hop já foram processados por utilizarem samplers de outros artistas. A justiça (ou as empresas, ou certo público) adotaria os mesmos procedimentos diante de cabeções do naipe de um Walter Benjamin, este grande adepto das técnicas de colagem/montagem, e glorioso fumador de haxixe?

"Hmmm, isso aqui dá pra usar..."

Walter Benjamin: "Hmmm, isso aqui dá pra usar..."

O próprio cinema, inclusive o milionário cinema hollywoodiano, não vive sem apropriação. O exemplo que me ocorre agora é o daquela cena em Be Cool em que John Travolta e Uma Thurman repetem a dança que haviam protagonizado antes em Pulp Fiction. A própria música do Black Eye Peas que serve de trilha começa com uma referência a Tom Jobim. Costuma-se chamar este tipo de procedimento de citação. Trata-se, no entanto, de um tipo muito peculiar de citação, em que se omite a autoria do “original”. Outro nome para esta modalidade criativa seria plágio.

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Mas o plágio não é um fruto deliberado da má-fé como prega o senso comum. A rigor, é qualquer utilização de ideia ou linguagem que não remeta explicitamente ao original. Note o detalhe da linguagem. Isto quer dizer que, em certos meios (o acadêmico, por exemplo), pegar uma expressão emprestada de alguém sem mencionar explicitamente este alguém já é considerado plágio, ainda que não tenha havido roubo de ideia. A citação cinematográfica é plágio porque não remete explicitamente ao original. Ninguém avisa lá nos créditos finais que determinada cena é uma citação de outra.

Por que isto não nos choca, enquanto público? Porque em geral, nós conhecemos a obra que deu origem à segunda obra, ou temos algum amigo cinéfilo que conhece e nos conta, todo exibido. Isto não acontece com a mesma frequência quando se trata de outras modalidades de criação. Socialmente, lemos menos do que vemos filmes. Portanto a possibilidade de reconhecer um filme dentro de outro é mais presente do que a de reconhecer um livro dentro de outro. O risco que não podemos correr é o de nos sentimos insultados ao não o reconhecermos. O risco de nos tornamos intolerantes.

Guy Debord, um dos maiores e mais criativos plagiadores que o século 20 conheceu, chamou a atenção para isto no fim da vida. Debord ficou famoso por sua atuação teórico-prática no Situacionismo e sobretudo pelo livro A Sociedade do Espetáculo, que abre com um caso clássico de plágio. O primeiro parágrafo da obra é literalmente o primeiro parágrafo de O Capital, do famoso atacante do Vasco Karl Marx, com apenas uma troca de palavra. A técnica ficou conhecida como detournement, que seria algo como um desvio, uma citação desviada.

Os usos de Marx

Os usos de Marx

Sem entrar em muitos detalhes, o objetivo era mostrar que a etapa do capitalismo em que vivíamos pelo acúmulo de mercadorias havia passado, e chegara o tempo em que no lugar delas passáramos a acumular apenas imagens de mercadorias — espetáculos. Daí que, ao invés de citar o parágrafo original e discorrer sobre ele até alcançar uma conclusão, Debord julgou mais útil (por razões que não cabem discutir neste já longo texto) a substituição direta do que já não servia.

No fim da vida, em seu último livro, ele desistiria do procedimento, e registraria que esse tipo de técnica seria adequada apenas a sociedades que fossem capazes de reconhecê-la. Esta é a chave do roubo criativo. Ao contrário do plágio praticado por pura falta de talento, o plágio criativo funciona para revelar, não para ocultar suas origens. Ele não pretende muito mais do que ser uma forma mais direta de entrar no longo diálogo do conhecimento.

[Reuben da Cunha Rocha.]

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