Resultados da pesquisa por “victor wolffenbüttel” – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Thu, 30 Jan 2025 14:39:06 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Resultados da pesquisa por “victor wolffenbüttel” – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 A corrida da IA ganha um novo capítulo – chinês e open source https://baixacultura.org/2025/01/29/a-corrida-da-ia-ganha-um-novo-capitulo-chines-e-open-source/ https://baixacultura.org/2025/01/29/a-corrida-da-ia-ganha-um-novo-capitulo-chines-e-open-source/#comments Thu, 30 Jan 2025 01:31:18 +0000 https://baixacultura.org/?p=15766  

Segunda-feira, 27 de janeiro, Wall Street atravessou um de seus dias mais turbulentos. As previsões para o setor de inteligência artificial desmoronaram, “players” viram seus papéis derreterem. As ações da Nvidia, inflacionada pela corrida por chips instalados nas IAs generativas, tombaram 17%, resultando em uma perda de US$ 589 bilhões em valor de mercado – a maior queda diária já registrada na história do mercado financeiro americano, que virou matéria e foco de atenção de diversos jornais. Sete bigtechs (Apple, Amazon, Alphabet, Meta, Microsoft, Nvidia e Tesla) viram uma perda de US$ 643 bilhões em suas ações. O responsável por essa reviravolta? Um chatbot de baixo custo lançado por uma startup chinesa, a DeepSeek, criado em 2024 como um braço de pesquisa de um fundo chamado High Flyer, também chinês. Segundo a empresa, o custo de treinamento do modelo por trás da IA, o DeepSeek-R1, foi de aproximadamente US$ 6 milhões – um décimo do que a Meta investiu no desenvolvimento do Llama 3.1, por exemplo, ou menos ainda dos US$ 100 milhões que a OpenIA investiu no seu último modelo. Além disso, a startup informou que seu chatbot apresentou um desempenho superior ao GPT-4, da OpenAI, em 20 das 22 métricas analisadas.

Não entrando nos pormenores econômicos especulativos do mercado de ações (o tombo se deu no valor do mercado destas big techs a partir da desvalorização de suas ações), o fato principal aqui é: a queda foi sobretudo porque a DeepSeek mostrou ao mundo que existe possibilidade de se competir na área com menos dinheiro, investido de forma eficiente. Com menos processadores, chips e data centers, a empresa destravou a possibilidade de operar com custos menores, justo semanas depois de Trump, ao lado de Sam Altman (Open IA) e Larry Ellison (Oracle), anunciar o “Stargate”, um mega programa de investimentos em IA no Texas com potencial anunciado de alavancar até US$ 500 bilhões de dólares em cinco anos. O lançamento do modelo da DeepSeek redesenha a disputa entre EUA e China pela inteligência artificial e mostra que, mesmo com as travas colocadas pelo Governo Biden na compra de chips da Nvidia pela China, ainda assim é possível fazer sistemas robustos de IA de forma mais barata do que Altman e cia afirmam.

As diferenças técnicas do sistema chinês

Vamos tentar explicar aqui brevemente como funciona o DeepSeek e as principais diferenças em relação ao seus modelos concorrentes. O recém-lançado R1 é um modelo de linguagem em grande escala (LLM) que conta com mais de 670 bilhões de parâmetros, projetado a partir de 2.048 chips H800 da Nvidia – estima-se, por exemplo, que os modelos desenvolvidos pelas big techs utilizem cerca de 16 mil chips para treinar os robôs. Utiliza-se de aprendizado por reforço, uma técnica de aprendizado de máquina (machine learning) em que o sistema aprende automaticamente com os dados e a própria experiência, sem depender de supervisão humana,  a partir de mecanismos de recompensa/punição.

Para aumentar sua eficiência, a DeepSeek adotou a arquitetura Mixture-of-Experts (MoE), uma abordagem dentro do aprendizado de máquina que, em vez de utilizar todos os parâmetros do modelo (ou toda as redes neurais) em cada tarefa, ativa só os necessários de acordo com a demanda. Isso torna o R1 mais ágil e reduz o consumo de energia computacional, executando as operações de forma mais leve e rápida. É como se o modelo fosse uma grande equipe de especialistas e, ao invés de todos trabalharem sem parar, apenas os mais relevantes para o trabalho em questão são chamados, economizando tempo e energia.

Outra técnica utilizada pelo R1 é a Multi-Head Latent Attention (MLA), que permite ao modelo identificar padrões complexos em grandes volumes de dados, usando de 5 a 13% da capacidade de modelos semelhantes como a MHA (Multi-Head Attention), o que a torna mais eficiente, segundo essa análise bem técnica publicada por Zain ul Abideen, especialista em LLM e aprendizado de máquina, em dezembro 2024. Grosso modo, a MLA analisa de forma simultânea diferentes partes dos dados, a partir de várias “perspectivas”, o que possibilita ao DeepSeek-R1 processar informações de maneira mais precisa gastando menos recursos de processamento. A MLA funciona como um grupo de pessoas olhando para o mesmo problema de diferentes ângulos, sempre buscando a melhor solução — de novo e de novo e de novo, a cada novo desafio.

Além de seu baixo custo de treinamento, um dos maiores atrativos do modelo está no baixo custo da operação geral. Grandes empresas de tecnologia costumam cobrar valores altos para acessar suas APIs, ferramentas que permitem que outras empresas usem seus modelos de inteligência artificial em seus próprios aplicativos. A DeepSeek, por outro lado, adota uma abordagem mais acessível; a API do R1 custa entre 20 e 50 vezes menos do que a da OpenAI, de acordo com a empresa. O preço de uma API é calculado com base na quantidade de dados processados pelo modelo, medido em “tokens”. No caso da DeepSeek, a API cobra US$ 0,88 por milhão de tokens de entrada e US$ 3,49 por milhão de tokens de saída. Em comparação, a OpenAI cobra US$ 23,92 e US$ 95,70, respectivamente. Ou seja, empresas que optarem pela tecnologia da chinesa podem economizar substancialmente ao integrar o modelo R1 em suas plataformas.

A DeepSeek declarou que usou 5,5 milhões de dólares (32 milhões de reais) em capacidade computacional, utilizando apenas as 2.048 GPUs Nvidia H800 que a empresa chinesa tinha, porque não podia comprar as GPUs H100 ou A100, superiores, que as big techs acumulam às centenas de milhares. Para ter uma ideia: Elon Musk tem 100 mil GPUs, a OpenAI treinou seu modelo GPT-4 em aproximadamente 25 mil GPUs A100.

Em entrevista à TV estatal chinesa, Liang Wenfeng, CEO da DeepSeek e também do fundo que bancou o modelo (High Flyer), disse que a empresa nunca pretendeu ser disruptiva, e que o “estrelato” teria vindo por “acidente”. “Não esperávamos que o preço fosse uma questão tão sensível. Estávamos simplesmente seguindo nosso próprio ritmo, calculando custos e definindo preços de acordo. Nosso princípio não é vender com prejuízo nem buscar lucros excessivos. O preço atual permite uma margem de lucro modesta acima de nossos custos”, afirmou o fundador da DeepSeek.

“Capturar usuários não era nosso objetivo principal. Reduzimos os preços porque, primeiro, ao explorar estruturas de modelos de próxima geração, nossos custos diminuíram; segundo, acreditamos que os serviços de IA e API devem ser acessíveis e baratos para todos.”

Wenfeng é bacharel e mestre em engenharia eletrônica e da informação pela Universidade de Zhejiang. Entre muitas especulações momentâneas sobre sua vida pessoal, o que se sabe é que o empresário de 40 anos parece “mais um nerd do que um chefe” e que é um entusiasta do modelo open source de desenvolvimento, o que nos leva para o próximo tópico.

As vantagens do código aberto 

Um componente fundamental do sucesso (atual) do modelo chinês é o fato de estar em código aberto. O DeepSeek-V3, lançado no final de 2024, está disponível no GitHub, com uma documentação detalhada sobre como foi feito e como pode ser replicado.

Isso, na prática, tem fomentado uma corrida de várias pessoas e grupos para experimentar fazer seus próprios modelos a partir das instruções dadas pela equipe do DeepSeek. Dê uma busca no Reddit e nos próprios buscadores nestes últimos dias de janeiro de 2025 e você já verá uma enxurrada de gente fazendo.

Como vocês já ouviram falar no “A Cultura é Livre”, a natureza do código aberto, de origem filosófica no liberalismo clássico do século XVII e XVIII, permite mais colaborações, e acaba por impulsionar tanto a concorrência de outras empresas no setor quanto diferentes forks independentes e autônomos individuais. Vale, porém, aqui dizer que o código aberto não é o mesmo que um software livre. Software de código aberto (free/libre/open source software, acrônimo Floss adotado pela primeira vez em 2001) é um nome usado para um tipo de software que surgiu a partir da chamada Open Source Initiative (OSI), estabelecida em 1998 como uma dissidência com alguns princípios mais pragmáticos que os do software livre. A flexibilização na filosofia de respeito à liberdade dos usuários (mais rígida e comprometida com a justiça social no software livre, mais pragmática e aplicável como metodologia de desenvolvimento no open source) propiciou uma expansão considerável tanto do software de código aberto quanto de projetos e empresas que têm este tipo de software como produto e motor de seus negócios. A OSI tem como texto filosófico central “A catedral e o bazar”, de Eric Raymond, publicado em 1999. Nele, Raymond trabalha com a ideia de que “havendo olhos suficientes, todos os erros são óbvios”, para dizer que, se o código fonte está disponível para teste, escrutínio e experimentação pública, os erros serão descobertos mais rapidamente.

A definição da OSI diz que um sistema open source é:

The program must include source code, and must allow distribution in source code as well as compiled form. Where some form of a product is not distributed with source code, there must be a well-publicized means of obtaining the source code for no more than a reasonable reproduction cost, preferably downloading via the Internet without charge. The source code must be the preferred form in which a programmer would modify the program. Deliberately obfuscated source code is not allowed. Intermediate forms such as the output of a preprocessor or translator are not allowed.

O esclarecimento sobre o que é código aberto é importante porque, na esteira do desenvolvimento das IAs de código aberto, vem também surgindo um movimento de open washing, ou seja: a prática de empresas privadas dizerem que os códigos de seus sistemas algorítmicos são abertos – quando na verdade não são tão abertos assim. Ou então quando grandes corporações (ou startups) iniciam projetos em código aberto para incorporar o trabalho colaborativo de colaboradores (desenvolvedores, tradutores, cientistas de dados) – para logo depois, quando o projeto se torna mais robusto, fecharem o código e nunca mais abrirem. “O Google tem um histórico nessa prática, a própria OPEN IA fez isso – e foi processada por Elon Musk (!) justamente por não seguir os princípios abertos.

Escrevemos em nossa última newsletter do BaixaCultura que a Meta, ao dizer que seu modelo LLama é aberto, vem “poluindo” e “confundindo” o open source, como afirma Stefano Maffulli, diretor da Open Source Initiative (OSI). Mas o que o Llama traz como aberto, porém, são os pesos que influenciam a forma como o modelo responde a determinadas solicitações. Um elemento importante para a transparência, mas que por si só não faz se encaixar na definição do open source. A licença sob a qual o Llama foi lançado não permite o uso gratuito da tecnologia por outras empresas, por exemplo, o que não está em conformidade com as definições de código aberto reconhecidas pela OSI. “Programadores que utilizam modelos como o Llama não têm conseguido ver como estes sistemas foram desenvolvidos, ou construir sobre eles para criar novos produtos próprios, como aconteceu com o software de código aberto”, acrescenta Maffuli.

Mas existem IAs totalmente abertas?

A disputa (velha, aliás) pelo que de fato é open source – e principalmente o que não é – também ganha um novo capítulo com o DeepSeek. A “OSI AI Definition – 1.0-RC1” aponta que uma IA de código aberto deve oferecer quatro liberdades aos seus utilizadores:

_ Utilizar o sistema para qualquer fim e sem ter de pedir autorização;

_ Estudar o funcionamento do sistema e inspecionar os seus componentes;

_ Modificar o sistema para qualquer fim, incluindo para alterar os seus resultados;

_ Partilhar o sistema para que outros o utilizem, com ou sem modificações, para qualquer fim;

Nos quatro pontos o DeepSeek v-1 se encaixa. Tanto é que, como mencionamos antes, já tem muita gente fazendo os seus; seja criando modelos ainda mais abertos quanto para ser executada localmente em um dispositivo separado, com boas possibilidades de customização e com exigência técnica possível na maior parte dos computadores bons de hoje em dia. Para não falar em modelos parecidos que já estão surgindo na China, como o Kimi k1.5, lançado enquanto esse texto estava sendo escrito – o que motivou memes de que a competição real na geopolítica de IA está sendo feita entre regiões da China, e não entre EUA X China.

O fato de ser de código aberto faz com que o DeepSeek, diferente do ChatGPT ou do LLama, possa ser acoplado e inserido com diferentes funcionalidades por outras empresas, grupos, pessoas com mais facilidade e menor custo. Ao permitir que novas soluções surjam, torna a barreira de entrada da inteligência artificial muito menor e estoura a bolha especulativa dos financistas globais sobre o futuro da tecnologia – o que talvez seja a melhor notícia da semana.

Mas há um porém importante nessa discussão do código aberto: as bases de dados usadas para treinamento dos sistemas. Para treinar um modelo de IA generativa, parte fundamental do processo são os dados utilizados e como eles são utilizados. Como analisa o filósofo e programador Tante nesse ótimo texto, os sistemas de IA generativa (os LLMs) são especiais porque não consistem em muito código em comparação com o seu tamanho. Uma implementação de uma rede neural é constituída por algumas centenas de linhas de Python, por exemplo, mas um LLM moderno é composto por algum código e uma arquitetura de rede – que depois vai ser parametrizada com os chamados “pesos”, que são os milhares de milhões de números necessários para que o sistema faça o que quer que seja, a partir dos dados de entrada. Assim como os dados, estes “pesos” também precisam ser deixados claros quando se fala em open source, afirma Tante.

Não está claro, ainda, quais foram os dados de treinamento do DeepSeek e como estes pesos foram distribuídos. Endossando Tante, Timnit Gibru disse neste post que para ser open source de fato teria que mostrar quais os dados usados e como foram treinados e avaliados. O que talvez nunca ocorra de fato, pois isso significa assumir que a DeepSeek pegou dados de forma ilegal na internet tal qual o Gemini, a LLama e a OpenIA – que está acusando a DeepSeek de fazer o mesmo que ela fez (!). Outras IAs de código aberto também não deixam muito claro como funcionam suas bases, embora as proprietárias muito menos. Ainda assim, são os modelos de IA identificados como open source, com seus códigos disponíveis no Github, os que lideram o nível de transparência, segundo este índice criado por pesquisadores da Universidade de Stanford, que identificou como os mais transparentes o StarCoder e o Jurassic 2.

Podemos concluir que na escala em que estamos falando desses sistemas estatísticos atualmente, e entendendo o acesso e o tratamento dos dados como elementos constituintes do códigos a ser aberto, uma IA totalmente open source pode ser quase uma utopia. Muitos modelos menores foram e estão sendo treinados com base em conjuntos de dados públicos explicitamente selecionados e com curadoria. Estes podem fornecer todos os processos, os pesos e dados, e assim serem considerados, de fato, como IA de código aberto. Os grandes modelos de linguagem que passamos a chamar de IA generativa, porém, baseiam-se todos em material adquirido e utilizado ilegalmente também porque os conjuntos de dados são demasiado grandes para fazer uma filtragem efetiva de copyright e garantir a sua legalidade – e, talvez, mesmo a sua origem definitiva, dado que muitas vezes podemos ter acesso ao conjunto de uma determinada base de dados, mas não exatamente que tipo de dado desta base foi utilizada para treinamento. Aliás, não é surpresa que hoje muitos dos que estão procurando saber exatamente o dado utilizado são detentores de copyright em busca de processar a Open AI por roubo de conteúdo.

Mesmo que siga o desafio de sabermos como vamos lidar com o treinamento e a rastreabilidade dos dados usados pelos modelos de IA, a chegada do DeepSeek como um modelo de código aberto (ou quase) tem enorme importância sobretudo na ampliação das possibilidades de concorrência frente aos sistemas da big techs. Não é como se o império das grandes empresas de tecnologia dos Estados Unidos tivesse ruído da noite pro dia, mas houve uma grande demonstração de como a financeirização da economia global amarrou uma parte gigantesca do valor financeiro do mundo às promessas de engenheiros que claramente estavam equivocados nas suas projeções do que era preciso para viabilizar a inteligência artificial – seja para ganhos especulativos ou por puro desconhecimento.

A parte ainda não solucionada da equação é uma repetição do antigo episódio envolvendo o lançamento do Linux: se essa solução estará disponível para ser destrinchada por qualquer um, como isso vai gerar mais independência aos cidadãos? A inteligência artificial tem milhares de aplicações imaginadas, e até agora se pensava em utilizá-la nos processos produtivos de diversas indústrias e serviços pelo mundo. Mas como ela pode sugerir independência e autonomia para comunidades, por exemplo? Espera-se, talvez de maneira inocente, que suas soluções sejam aproveitadas pela sociedade como um todo, e que não sejam meramente cooptadas pelo mercado para usos privados como tem ocorrido até aqui. Por fim, o que se apresenta é mais um marco na história da tecnologia, onde ela pode dobrar a curva da independência, ou seguir no caminho da instrumentalização subserviente às taxas de lucro.

[Leonardo Foletto e Victor Wolffenbüttel]

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Independência Digital (para além das big techs) https://baixacultura.org/2021/12/08/pequeno-compendio-da-independencia-digital/ https://baixacultura.org/2021/12/08/pequeno-compendio-da-independencia-digital/#respond Wed, 08 Dec 2021 23:27:09 +0000 https://baixacultura.org/?p=13862

Em um cenário de cada vez maior dependência dos serviços das chamadas Big Techs, quais são as tecnologias, comunidades e ideias que funcionam na internet para além dessas grandes empresas? Como elas estão construindo uma relação mais comunitária, diversa, de acesso livre, proteção à privacidade e fomento à autonomia com as tecnologias?

Há quem, em vez de propor fugas das tecnologias corporativas, de maneira individual ou setorial, busque estratégias que sejam coletivas. E é aqui onde “comunidade” e “colaborativo” recuperam uma mirada política onde o saber é compartilhado, o conhecimento se constrói em uma rede de pares, as experiências se valorizam em sua diversidade, e a autonomia e a autogestão impulsionam práticas coletivas. É assim que emergem propostas de organizações e comunidades que compartilham tecnologias, conhecimentos e conteúdos livres.

A proposta deste projeto, feito em parceria com o Goethe-Institute de Porto Alegre, é trazer estes projetos, ferramentas, softwares, sites, ideias e iniciativas que estão re-imaginando novos horizontes tecnológicos para além das big techs. Ao contrário do que o senso comum imagina, muitas iniciativas hoje, e já há algumas décadas, estão buscando construir tecnologias e a internet de formas mais colaborativas, justas e seguras para suas comunidades. Vamos trazer estas iniciativas (em torno de 40) divididas em cinco eixos:

1.Privacidade
O cerceamento da internet por um pequeno apanhado de empresas privadas – Google, Facebook, Amazon e Apple – tem tornado fácil a vigilância de nossas comunicações digitais na rede. Em troca de acesso “grátis” a serviços e sites da internet, oferecemos dados valiosos sobre nossa vida: o que comemos, onde moramos, que lugares frequentamos, quem são nossas amigas, quais nossas artistas favoritas, por onde nos deslocamos pelo mundo, em quem votamos, que causas somos a favor ou contra, entre outras milhares de informações que fornecemos nas redes sociais, nos aplicativos de nossos smartphones e em nossas navegações diárias na internet. Aqui vamos apresentar iniciativas como aplicativos de mensagens, navegadores, redes sociais, buscadores, mas também oficinas, coletivos e ideias que consideram a máxima popularizada pelo Wikileaks e pelos Cypherpunks, “Privacidade para os Fracos, Transparência para os fortes” ao buscar defender a nossa privacidade das grandes empresas que controlam a internet e também de governos.

2. Acesso Livre
A internet potencializou o acesso à informação e tem ajudado a tornar o conhecimento livre. Mas no meio de um mar de desinformação, quais são as iniciativas que estão liberando o conhecimento científico, jornalístico e ou reconhecido por pares? Aqui a ideia é trazer repositórios, licenças (como as Creative Commons), bibliotecas livres que estão organizando e tornando a cultura e o conhecimento livre, assim como falar de projetos, pessoas (como Aaron Swartz), livros e ideias que integram o movimento por um conhecimento e uma cultura livre.

3. Diversidade
Já não é mais novidade dizer que as tecnologias não são neutras, que carregam políticas trazidas por quem as constrói – geralmente homens brancos do norte global. Como podemos trazer diversidade na produção e no acesso de tecnologias digitais presentes em nosso dia a dia? Vamos detalhar iniciativas, projetos e ideias que estão, hoje, trazendo mulheres, pessoas negras e LGBTQI+, historicamente sub-representadas na discussão tecnológica, para o centro do debate, seja através de processos de formação, observação ou de construção de conhecimento e objetos técnicos.

4. Autonomia/soberania tecnológica
As empresas do chamado primeiro mundo, que dominam o mercado global de produção de tecnologias, tem cada vez mais provocado um chamado “colonialismo de dados”, em que dados produzidos nos países periféricos, principalmente do sul global, migram para o norte global. Essa medida tem afetado a soberania de muitos países, já que no mundo do big data os dados são cada vez mais fonte de riqueza. Como podemos construir alternativas autônomas de tecnologias no sul global? Como proteger nossos dados e a construção de conhecimento em nossas universidades, por exemplo, a partir de tecnologias que sejam transparentes e que respeitem os direitos humanos e a soberania dos nossos países? Organizamos algumas ferramentas, iniciativas, projetos e grupos que estão a defender a nossa autonomia, como aquelas ligadas aos softwares e aos hardwares livres, que respeitem nossa privacidade, fomentem a construção de conhecimento local e produzam riqueza para os territórios em que são produzidos.

5. Comunidade
Quais são as iniciativas de base comunitária que estão construindo, hoje, alternativas tecnológicas na e com a internet? Aqui vamos apresentar iniciativas no Brasil e em outros países (como Espanha, Argentina e Alemanha) como as redes livres, que funcionam como grandes redes sem fio abertas, montadas a partir de um grupo de roteadores conectados entre si que propagam o tráfego entre usuários e também emitem serviços em banda larga a partir de pontos conectados à internet. Iniciativas que estão buscando desmonopolizar o tráfego de informação nas redes em um dos maiores gargalos da discussão sobre o acesso à internet, a questão da infraestrutura.

Na sexta feira, 10/12, 18h30, vamos apresentar o site do projeto, um pequeno compêndio com projetos, ferramentas, softwares, sites, ideias e iniciativas para quem quer usar todo o potencial da internet sem passar por serviços monopolistas que lucram com nossos cliques e a nossa atenção. Será um papo entre Leonardo Feltrin Foletto e Victor Wolffenbüttel (BaixaCultura), mediado pela jornalista e professora da Unisinos Taís Seibt, ao vivo no canal do YB do BaixaCultura.

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Como funciona (e lucra) o capitalismo de vacinação na pandemia https://baixacultura.org/2021/04/14/como-funciona-e-lucra-o-capitalismo-de-vacinacao-na-pandemia/ https://baixacultura.org/2021/04/14/como-funciona-e-lucra-o-capitalismo-de-vacinacao-na-pandemia/#comments Wed, 14 Apr 2021 20:02:49 +0000 https://baixacultura.org/?p=13606

As empresas farmacêuticas, seus chefes e acionistas já estão ganhando bilhões com as vacinas contra COVID, em um dos exemplos mais nefastos de como lucrar a partir de uma doença. Isso se deve em grande parte a um sistema, perverso em sua origem, que concentra a capacidade de produção na mão de poucos – sejam empresas ou Estados – o que intensifica e produz novas desigualdades na distribuição e consumo desses produtos. Nesse sistema, a indústria farmacêutica age em parceria com os Estados: primeiro, recebe subsídios governamentais para desenvolver medicamentos; em seguida, na combinação de preços geralmente muito acima dos custos, o que gera lucros exorbitantes para além dos que são considerados “necessários”, dentro desse sistema, para investimentos de risco como vacinas. Enquanto isso, os países mais pobres são deixados para trás novamente: 90% da produção das vacinas está sendo distribuída em países considerados desenvolvidos, enquanto que o restante pode demorar anos para ter vacinas suficientes para dar conta de suas populações. Pior: com a defesa ferrenha, por parte dos governos destes países, dos direitos de propriedade intelectual das empresas, evita-se (ou dificulta) que os países mais pobres possam produzir vacinas de modo mais rápido e barato. 

Traduzimos (melhor dizendo: adaptamos) dois textos do site britânico Corporate Watch [este e este], que desde 1996 cobre e pesquisa corporações, para dar mais detalhes dos abusivos lucros que a indústria farmacêutica obtém a partir da exploração das patentes de medicamentos produzidos, em sua maior parte, a partir de dinheiro público. A tradução é de Victor Wolffenbüttel e a adaptação de Leonardo Foletto (colaboraram Tatiana Dias e Alexandre Abdo). 

Fonte: Médicos Sem Fronteiras

Cinco maneiras pelas quais as grandes empresas farmacêuticas ganham tanto dinheiro*

A indústria farmacêutica é lucrativa: as gigantes da área têm taxas de lucro de até 20% – mais do que o dobro de outros setores. Mas como elas ganham tanto dinheiro? 

1) Persiga o lucro, e não as demandas 

Um dos maiores problemas com um sistema que direciona a pesquisa médica mais para obtenção de lucros em vez das necessidades de saúde da população é que o investimento em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) é canalizado para os produtos que podem gerar mais dinheiro para as empresas farmacêuticas. Os melhores negócios são os medicamentos para pacientes que precisam de  medicações caras (como câncer) e os que vão ser usados por muito tempo. Os melhores pacientes são os dos EUA, onde os preços dos remédios são mais altos e certas condições crônicas do sistema de saúde local exigem prescrições repetidas. Ou onde as drogas são altamente viciantes, como no caso de opióides como o Oxycontin, indicado para o tratamento de dores moderadas a severas por período de tempo prolongado.

Por outro lado, as vacinas de dose única contra epidemias que afetam principalmente os países mais pobres são o exemplo clássico de um mau negócio. Assim, a pesquisa sobre vacinas foi relativamente negligenciada até o ano passado – quando a COVID-19 se tornou um problema global e o financiamento do Estado entrou em ação. 

2) Patentear tudo 

As empresas farmacêuticas detêm patentes – licenças que garantem seus direitos de “propriedade intelectual” – de novos medicamentos. Isso significa que ninguém mais pode produzir o mesmo medicamento sem sua permissão durante a vigência da patente, que é de 20 anos na maioria dos países. 

A ideia do livre mercado é que, se uma empresa obtém altos lucros, novos participantes poderão entrar fazendo a mesma coisa (produto, medicamento, etc), mas mais barato, puxando então para baixo os preços e os lucros de todo esse mercado. As patentes significam que as empresas farmacêuticas têm monopólios legais sobre medicamentos específicos: como nenhuma outra empresa pode baixar os preços, elas podem estabelecê-los e obter grandes lucros. 

O sistema de propriedade intelectual é imposto por governos em todo o mundo sob o acordo TRIPS, que é um dos principais documentos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Alguns estados são apoiadores mais fervorosos do que outros; os EUA são particularmente conhecidos como um forte defensor da propriedade intelectual das empresas; a UE não está muito atrás (como mostra este relatório recente do Corporate Europe Observatory). 

Governos como da Índia e África do Sul, juntamente com ONGs como a Médicos Sem Fronteiras, pediram que as patentes de vacinas fossem canceladas durante a pandemia da COVID-19. Isso poderia permitir que os países mais pobres comecem a fabricar suas próprias vacinas a preço de custo – em vez de esperar até 2023 para que as empresas farmacêuticas atendam aos seus pedidos. A ideia sofreu forte oposição dos EUA, UE, Reino Unido e outros países ricos, como contamos aqui no BaixaCultura em janeiro

3) Preços muito, muito mais altos do que os custos 

Como os apoiadores da indústria farmacêutica justificam um sistema que nega medicamentos a preços acessíveis para bilhões de pessoas? O argumento é que essa é a única maneira de cobrir os custos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de novos medicamentos. O principal grupo de lobby da indústria dos EUA, a Pharmaceutical Research and Manufacturers of America (PHRMA), afirma: “Em média, leva de 10 a 15 anos e custa US $ 2,6 bilhões para desenvolver um novo medicamento, incluindo o custo de muitas falhas”. Sem patentes, dizem, os “rivais” (atenção ao vocabulário) poderiam simplesmente copiar suas receitas e ninguém se daria ao trabalho de desenvolver novos medicamentos. 

As empresas farmacêuticas gastam, em média, cerca de 20% de toda a receita de vendas em P&D. Isso é realmente alto em comparação com outras indústrias: apenas a aviação e a indústria espacial têm percentual maior em P&D. Mesmo assim, as vendas cobrem os custos muitas vezes. Uma vez que os medicamentos estão na linha de produção, os custos reais de fabricação são minúsculos em comparação com os preços frequentemente altos (ao contrário das naves espaciais e de aviões, que são muito caros de produzir por unidade). Essa diferença é o que explica aquela já citada margem de lucro de 20% que a indústria farmacêutica obtém com seus produtos.

A insulina custa em média menos de 6 dólares por frasco para produzir, mas é vendida por até 275 dólares nos Estados Unidos – um exemplo dado pelo grupo da campanha Pacientes por Drogas Acessíveis (Patients for Affordable Drugs). Na Europa, a gigante farmacêutica Gilead cobrou uma média de 55.000 euros por um tratamento de 12 semanas contra a hepatite C – quando os remédios custam menos de 1 euro por comprimido para fabricar [fonte]. Esses exemplos extremos ilustram um padrão; um estudo acadêmico da Universidade do Sul da Califórnia descobriu que as empresas farmacêuticas dos EUA têm uma margem média de lucro bruto de 71% nas vendas de medicamentos – ou seja, o dinheiro que ganham com um medicamento após descontado o custo de produção, mas antes das despesas de toda a empresa, como marketing, impostos ou bônus executivos. 

4) Minimize o risco 

As empresas farmacêuticas argumentam que têm de assumir o risco de desenvolver medicamentos experimentais que nunca chegam ao mercado. Por exemplo, o custo médio de um novo medicamento contra o câncer foi estimado em 648 bilhões de dólares. A cifra de 2,6 bilhões de dólares citada no PHRMA acima é, na verdade, uma estimativa de “risco ponderado” que “inclui o custo de muitas falhas”. Se uma empresa farmacêutica inventar 10 medicamentos que custam 260 milhões de dólares cada, mas apenas um for aprovado, então a empresa teve o custo de 2,6 bilhões de dólares no total para produzir um remédio que possa ser vendido. 

Só que, na realidade, as grandes empresas farmacêuticas “inventam” apenas alguns dos medicamentos que patenteiam e vendem.Uma análise de dois gigantes da “Big Pharma” mostra que a Pfizer desenvolveu apenas 10 dos 44 medicamentos mais vendidos “da casa” (23%) – e a Johnson & Johnson desenvolveu apenas 2 de 18 (11%). A “inovação” ocorre em grande parte em laboratórios universitários e governamentais, ou em empresas de pesquisa menores. 

E muito disso é financiado pelo estado. Os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, o principal (mas não o único) órgão governamental de pesquisa médica do país, doam 39,2 bilhões de dólares por ano para universidades, escolas médicas e outras organizações de pesquisa. 

Uma vez que os medicamentos foram descobertos, os gigantes farmacêuticos intervêm – para comprar uma licença, ou uma empresa inteira – uma vez que o medicamento já se provou por meio de testes iniciais. (Veja um relatório recente dos EUA sobre esse tema.) As vacinas contra COVID-19 são exemplos clássicos. 

5) Lobby, lobby, lobby

A indústria farmacêutica é poderosa, com muitos amigos influentes. Nos Estados Unidos, o país com os preços de medicamentos mais altos do mundo, o setor farmacêutico gasta mais do que qualquer outro setor em lobby. Ao longo de 22 anos, as empresas farmacêuticas e grupos da indústria gastaram 4,45 bilhões de dólares em lobby com políticos dos EUA – quase o dobro do valor do segundo mais gastador, o mercado de seguros. De acordo com a OpenSecrets, a indústria tem mais de 1.450 lobistas trabalhando para ela, dentre os quais 66% são ex-funcionários do governo. E esta é apenas a face mais publicamente conhecida, oficialmente declarada, da influência política da indústria farmacêutica – ela apenas arranha a superfície de um mundo de doações políticas, cargos de diretoria, “portas giratórias” e muito mais. 

Um relatório do Corporate Europe Observatory detalha como a União Europeia se tornou um instrumento cúmplice na defesa dos direitos de propriedade farmacêutica. As dez maiores empresas farmacêuticas gastaram até 16 milhões de euros em lobby lá em 2019. No Reino Unido, surgiram histórias sobre como a indústria financia grupos de pacientes para que eles ajudem a fazer lobby por novos tratamentos medicamentosos; ou sobre como o sistema público de saúde encomenda pesquisas como estratégia de compra de um grupo de lobby financiado pela indústria. 

Vale salientar que governos, como o inglês, o dos países da União Europeia e os Estados Unidos, também são grandes (os maiores) clientes farmacêuticos, que pegam bilhões de seus contribuintes para comprar os medicamentos das empresas. 

Fonte: Corporate Watch

Vacinas contra a covid-19: quanto estas empresas irão lucrar este ano? 

O Corporate Watch examinou três das quatro principais vacinas que têm circulado no mundo: BioNTech e Pfizer, Astra Zeneca e Oxford University, e Moderna. Quanto dinheiro as empresas por trás delas vão ganhar? Como eles têm sido apoiados pelo setor público? E onde o dinheiro vai parar? 

BioNTech / Pfizer: lucro estimado de 4 bilhões de dólares, após vendas de 15 bilhões. A Pfizer diz que já tem pedidos acumulados de 15 bilhões de dólares em vacinas, onde cada dose está precificada em 19 dólares. Segundo o Financial Times, a margem de lucro pode ficar perto de 30% neste ano. Trabalhando sem nenhum melindre para maximizar o lucro, a empresa está sendo uma negociante dura com países mais ricos e também com os mais pobres. 

Moderna: lucro estimado de US $ 8 bilhões de dólares, após vendas de 18,4 bilhões. A Moderna diz que está a caminho de produzir pelo menos 700 milhões de vacinas pré-encomendadas em 2021. As injeções da Moderna são as mais caras, entre 25 e 37 dólares a dose, e a empresa diz que o custo de produção de suas vacinas será de apenas 20% do preço de venda. 

Oxford / AstraZeneca: lucro desconhecido, após vendas previstas de 6,4 bilhões de dólares em 2021. Está vendendo pelo preço mais barato (por enquanto) e prometeram produzir a preço de custo sem obter lucro durante a pandemia. Mas o que isso realmente significa? Um contrato visto pelo Financial Times sugere que eles poderiam declarar o fim da pandemia e aumentar os preços a qualquer momento a partir de julho de 2021. E o contrato da AstraZeneca com a Universidade de Oxford permite que a empresa ganhe até 20% além do custo de fabricação das injeções. Em outro indício dos limites da promessa de vender “a preço de custo”, alguns países mais pobres, incluindo Bangladesh, África do Sul e Uganda, podem ter que pagar mais pela vacina do que a União Europeia porque têm menos poder de barganha do que os grandes, que estão pegando a primeiro parte da produção das vacinas.

Vale destacar que as vacinas estão sendo compradas por governos em todo o mundo em encomendas antecipadas por atacado. Esses números de lucro, portanto, vêm predominantemente das vendas a autoridades públicas. Como vemos abaixo, os governos também subsidiaram maciçamente o desenvolvimento das vacinas. Portanto, o setor público está pagando duas vezes: primeiro financiando a pesquisa e depois comprando os resultados a preços inflacionados. 

E nos próximos anos? 

Isso é uma incógnita. Dada a quantidade de vacinas em desenvolvimento, a competição pode manter os custos baixos. Mas se algumas se mostrarem mais eficazes do que outras, e a vacinação contra covid-19 se tornar um evento anual como as vacinas contra gripe, os lucros podem continuar acumulando nos próximos anos. E uma vez que a intensidade da pandemia diminua, todas as empresas podem se sentir livres para aumentar ainda mais os preços.O diretor financeiro da Pfizer, por exemplo, disse a analistas que o preço atual “não é um preço normal, que é de 150, 175 dólares por dose. Depois da pandemia, obviamente vamos conseguir vendê-las por um maior preço ”. As empresas/consórcios responsáveis pelas três principais vacinas em planos declarados de aumentar os preços das vacinas contra o coronavírus em um futuro próximo e capitalizar a presença duradoura do vírus.

Posições dos países em relação às patentes das vacinas. Fonte: Médicos Sem Fronteiras

Quanto custou o desenvolvimento das vacinas? 

Os números exatos são segredos corporativos, mas parece provável que cada uma tenha custado cerca de 1 bilhão de dólares para serem desenvolvidas. A pesquisa inicial para uma nova vacina epidêmica pode custar em média 68 milhões de dólares – embora as injeções contra COVID-19 tenham sido desenvolvidas muito mais rápido. Mas o principal custo é a execução de testes de “Fase 3” em grande escala – para as vacinas contra a COVID-19, eles foram maiores do que o normal, com dezenas de milhares de voluntários

De que outra forma as empresas irão se beneficiar? 

As vacinas são um grande golpe de relações públicas. As empresas se tornaram nomes conhecidos, e no bom sentido. Isso é uma reviravolta para uma indústria que foi insultada como poucas outras após décadas de especulação. Só agora está começando a ser questionado no debate público se as vacinas poderiam ter sido produzidas de uma forma mais acessível e justa – pelo menos no Reino Unido. 

A ciência que sustenta as vacinas contra covid-19 também pode ser usada pelas empresas para tratar – e lucrar com – outras doenças. A Moderna espera que sua tecnologia de mRNA possa ser usada para tratar o câncer, o “mercado” farmacêutico mais lucrativo. A Vaccitech, mencionada acima, está arrecadando grandes somas de investidores, na esperança de que sua tecnologia contra covid-19 possa ser usada para tratar hepatite e MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio).O desenvolvimento da ciência provavelmente foi ajudado por “testes de estrada” durante a preparação da vacina. 

Quem inventou as vacinas? 

BionNTech / Pfizer: A pesquisa foi realizada pela BioNTech, uma empresa alemã de pesquisa farmacêutica. A Pfizer  entrou como parceira assim que a vacina estava pronta para os testes. 

Moderna: a vacina foi co-desenvolvida pela Moderna e cientistas do governo dos EUA que trabalham para o National Institute of Health (NIH) (Instituto Nacional de Saúde). Há algum mistério sobre os papéis exatos do NIH e da Moderna, quem possui a propriedade intelectual e por que o governo dos EUA, aparentemente, permitiu que a Moderna ficasse com todos os lucros

Oxford / AstraZeneca: Cientistas da Oxford University no seu Instituto Jenner e Oxford Vaccines Group, liderados pelos professores Sarah Gilbert e Adrian Hill. 

As empresas apresentam as vacinas contra COVID-19 como um triunfo para a ciência corporativa. Mas na verdade apenas uma das vacinas analisadas, a BionNTech/Pfizer, foi desenvolvida pelo setor privado (ganhar dinheiro com as invenções dos outros é uma jogada farmacêutica clássica – leia nossa explicação aqui). Além disso, todas as equipes se beneficiaram da pesquisa inicial do Shanghai Public Health Clinical Center (Centro Clínico de Saúde Pública de Xangai), que publicou o primeiro sequenciamento genômico do vírus da COVID-19 gratuitamente no site de código aberto virological.org

Havia algum plano para produzir vacinas sem as Big Pharma lucrarem? 

Inicialmente, a Oxford considerou permitir que uma série de fabricantes produzissem sua vacina sem vender direitos exclusivos a nenhuma corporação. Mas, de acordo com o Wall Street Journal, executivos seniores da universidade, junto com seu principal financiador –  a Fundação Bill e Melinda Gates – argumentaram que não poderiam administrar uma “implantação global” sem a ajuda de uma grande indústria farmacêutica. A universidade inicialmente entrou em negociações com a gigante farmacêutica americana Merck, antes de finalmente assinar com a AstraZeneca em abril de 2020. O negócio firmado envolve uma licença completa para produzir e vender a vacina em troca de 90 milhões de dólares e 6% de participação nos royalties futuros, que, segundo a universidade, serão reinvestidos em pesquisas médicas. A Vaccitech Ltd, uma empresa privada derivada cujos diretores incluem os professores Gilbert e Hill, receberá 24% da receita da universidade. 

Quanto subsídio público eles receberam?

BioNTech / Pfizer: 465 milhões de euros (cerca de 550 milhões de dólares). A pesquisa foi financiada de forma privada, mas receberam um empréstimo de desenvolvimento de 100 milhões de euros do Banco Europeu de Investimento e uma doação de 365 milhões de euros do governo alemão para ajudar na manufatura. 

Oxford / AstraZeneca: cerca de 1,3 bilhões de dólares. A vacina veio de uma pesquisa de longo prazo na Universidade de Oxford, financiada pelo governo do Reino Unido e diversas outras fontes. O governo contribuiu com mais de 87 milhões de libras esterlinas para desenvolver a nova vacina no início de 2020. Os EUA adicionaram 1,2 bilhões de dólares a mais como parte de sua “Operação Warp Speed”. 

Moderna: mais de 955 milhões de dólares. O financiamento do governo dos EUA incluiu: uma quantia não divulgada para os testes da Fase 1 em março de 2020; 483 milhões de dólares em abril para Fase 2 e o início dos testes da Fase 3; e outros 472 milhões de dólares para expandir os testes de fase 3 em julho. A Moderna também recebeu uma doação de 1 milhão de dólares de Dolly Parton. 

Além desses subsídios para pesquisa, as empresas receberam enormes encomendas de governos antes mesmo de suas vacinas serem aprovadas para uso. O governo dos Estados Unidos, por exemplo, fez pré-encomendas massivas, de 1,95 e 1,53 bilhões de dólares das vacinas da BioNTech / Pfizer e Moderna por meio de sua chamada “Operação Warp Speed”. 

Quem receberá o dinheiro? 

Pfizer / BioNTech: Os lucros são divididos igualmente entre as duas empresas. Os acionistas receberão “dividendos” – dinheiro pago a partir dos lucros das empresas. Os principais acionistas da Pfizer são fundos de investimento globais: especialmente Vanguard Group (7,6%), State Street Global Advisors (5%) e BlackRock (4,9%). Administrado por algumas das pessoas mais ricas e poderosas do mundo, como o CEO da Blackrock, Larry Fink, estes três fundos controlam aproximadamente 20 trilhões de dólares dos ativos mundiais. Enquanto isso, o CEO da Pfizer, Albert Bourla, ganhou as manchetes vendendo 4,2 milhões de libras esterlinas em ações da Pfizer no dia em que anunciou que sua vacina funcionava. 

A BioNTech é geralmente apresentada como uma história de sucesso da pobreza à riqueza para dois médicos imigrantes, o casal Uğur Şahin e Özlem Türeci. A vacina os tornou bilionários. Mas os principais proprietários da empresa, que detinham cerca de 50% no ano passado, são os gêmeos investidores em biotecnologia Thomas e Andreas Struengmann. Eles ganharam seus primeiros bilhões com a empresa de medicamentos genéricos Hexal, que fundaram na década de 1980 e depois venderam para a Novartis em 2005. 

Moderna: Os acionistas incluem o presidente Noubar Afeyan (14% de participação no início da pandemia), o CEO Stéphane Bancel (9%) e os professores Timothy Springer (Harvard) e Robert Langer (MIT) – que, de repente, passaram de diretores de uma empresa deficitária a multimilionários. As ações da Moderna aumentaram enormemente de valor durante a pandemia e Bancel, em particular, vendeu parte de suas participações da empresa nos últimos meses, arrecadando milhões em dinheiro. A Moderna passou a ser listada na bolsa de valores em 2018; seu maior investidor institucional é o fundo de investimento escocês Baillie Gifford, que tem em torno de 11% das ações. As gigantes americanas Vanguard e BlackRock vêm em seguida, com 5,7% e 4,1% cada. Um mistério ainda não claramente respondido sobre a vacina Moderna é se algum dinheiro vai voltar para o governo dos EUA, que a “co-desenvolveu” e financiou. 

Oxford / AstraZeneca: AstraZeneca, com sede em Londres, é uma megacorporação global pertencente aos mesmos grandes fundos de investimento da Pfizer e outros. No final de 2020, seus três maiores proprietários eram BlackRock (7,5%), Wellington Management (5,2%) e Capital Group (4,3%). De acordo com o Wall Street Journal, a Universidade de Oxford receberá 6% dos pagamentos futuros de royalties. 24% deles serão repassados ​​para a Vaccitech Ltd, uma empresa privada derivada cujos diretores incluem os pesquisadores de vacinas, professores Gilbert e Hill. Cada um deles possui cerca de 5% das ações da Vaccitech. O principal acionista (46%) é uma empresa de investimentos chamada Oxford Sciences Innovation (OSI), criada pela universidade para canalizar capital para seus negócios derivados. A OSI tem vários acionistas além da própria universidade – incluindo Google Ventures, Huawei, a empresa farmacêutica chinesa Fosum (que também possui ações da Moderna), o sultanato de Omã, bem como bancos e fundos de private equity. 

Poderia ter sido diferente? 

A pesquisa inicial que sequenciou o genoma COVID-19 e deu início à corrida das vacinas foi publicada com código aberto, de uso gratuito para todos. Imagine se a pesquisa de vacinas também fosse publicada abertamente e sem patentes, para que todos os fabricantes, inclusive no sul global, pudessem produzir o que necessitam a preço de custo? Haveria, claro, ainda outros problemas, como a escassez de material para a produção dos imunizantes. Mas como afirmou Yuanqiong Hu, conselheiro na área legal e de políticas da MSF, não é uma questão de “ou / ou”, mas de “E/ E”. “Os governos precisam de um pacote completo de kits de ferramentas, incluindo acordos de transferência de tecnologia e medidas legais, como a proibição de patentes”. 

As três vacinas analisadas aqui poderiam também, ao menos, ter processos de produção um pouco mais parecidos com os que os fabricantes chineses e russos fizeram com suas respectivas vacinas, a Sinovac e a Sputnik V, que tiveram compartilhados seu licenciamento, “know-how” e sua tecnologia com diferentes países. É o caso do Brasil (via Instituto Butantan), Turquia e Indonésia, que estão produzindo a Sinovac em processo de colaboração, assim como nos Emirados Árabes Unidos, onde a Sinopharm (produtora da vacina chinesa) montou uma grande unidade para atender não só o país árabe mas diversos países aliados na região. Já a vacina russa tem acordos de produção com pelo menos cinco empresas farmacêuticas diferentes na Índia para fornecer algo como 500 milhões de doses este ano, assim como acordos semelhantes com a Coréia do Sul e outros locais. 

Vale ressaltar, entretanto, que estamos ainda falando de capitalismo; as empresas destes países adotam estratégias mais flexíveis para a celebração de acordos, mas ainda com cifras de milhões e propriedades intelectuais. O governo do Estado de São Paulo, por exemplo, comprou 46 milhões de doses da Sinovac por 90 milhões de dólares, um valor que é 10 vezes menor do que os Estados Unidos estão pagando para a Pfizer/Biotech e Moderna. 

Por fim, os governos poderiam usar de sua atribuição de representar o interesse público para organizar esforços de fato coletivos contra um inimigo comum que é mundial. Trata-se de um jogo onde a vitória só é completa quando todos ganham e onde o preço de perder é a morte. Diante disso, o simples fato destes governos não estarem articulando uma vasta rede de cooperação internacional também pode ser considerado um crime. Especialmente aqueles em que, além de não fazer o que como representantes de interesse público se esperaria, ainda atrapalham; caso hoje do Brasil, pária mundial, incentivador de tratamento preventivo não comprovado e boicotador de ações que já demonstraram funcionar, como os Lockdows e o uso de máscaras seguras.

Algumas leituras adicionais:

_ Bad Pharma – Ben Goldacre. Um levantamento muito detalhado da má prática da indústria farmacêutica, particularmente olhando para a questão de quem os resultados dos testes são sistematicamente manipulados.

_ Pharma – Gerald Posner (2020). Uma história jornalística da indústria farmacêutica (principalmente dos EUA) e seus crimes.

_ relatório do Accountability Office do governo americano (2017) sobre a indústria farmacêutica dos EUA oferece uma visão geral útil das principais questões.

_ Pacientes por Drogas Acessíveis – grupo de campanha dos EUA

_ Corporate Europe Observatory – relatórios sobre a política da indústria farmacêutica na Europa

_ Campanha Vacinas Para Todos (Portugal);

_ Lab Procomum sobre a quebra de patentes;

_ Campanha Vacina para todas e “Todos pelas Vacinas” (Brasil);

* Diferente do restante do conteúdo do BaixaCultura, o texto abaixo está licenciado em CC BY NC; esta é a licença do conteúdo do site Corporate Watch.

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Foto: Reprodução/Documentário “Dilema das redes” – Netflix

Não se fala em outra coisa na bolha: o dilema das redes. Claro, também se fala em muitas outros assuntos no grupo de interação mais próximo nas redes sociais que convencionamos chamar de bolha, mas o fato é que “The Social Dilemma”, documentário de Jeff Orlowski estreado em setembro no Netflix e traduzido aqui como “O Dilema das Redes”, tem gerado debate. Tanto tem que já há uma série de textos, de diversas perspectivas e lugares distintos, que refletem sobre a nossa sociedade e as tecnologias, especialmente as redes sociais na internet, a partir do documentário. Por que será que se fala, se pensa e se escreve tanto desse dilema?

Há diversos fatores, e nos próximos parágrafos vamos resumir alguns deles a partir de quatro diferentes textos que abordam o filme. Gostando ou não, parece que o documentário tem conseguido, em primeiro lugar, reunir diferentes tópicos que nós aqui do BaixaCultura e inúmeros outros projetos, pessoas e organizações falam com frequência há pelo menos 10 anos: a manipulação/modulação que as redes sociais têm feito no comportamento de milhares de pessoas e a necessidade de entender e agir contra isso; a disseminação de informação falsa a partir das mesmas redes sociais e o efeito nefasto disso na sociedade e especialmente na política; a transformação da internet de um lugar libertário e descentralizado em um grande shopping center controlado por algumas poucas empresas gigantes; os aspectos políticos das tecnologias e o que elas podem ajudar a perpetuar se não forem transparentes e auditadas de modo coletivo; o desejo e os benefícios na saúde emocional (e também corporal) de sair das redes sociais, ou pelo menos limitar a “dieta da informação” na rede; entre outros fatores correlatos.

Em segundo lugar, o documentário parece ter embalado tudo isso em um produto audiovisual bem acabado para um público muito maior que do que até então tratava desses temas. Esse parece ser um mérito quase inquestionável do documentário: tornar um assunto de nicho, uma preocupação de pessoas que lidam com a tecnologia e suas implicações sociais, culturais, políticas, econômicas, num assunto popular presente em diversas rodas de discussão. É notório que o potencial de circulação que o Netflix traz, com seus quase 190 milhões de assinantes no mundo inteiro, tem papel central em tornar a preocupação outrora somente de ativistas em um debate global. O que pode vir daí – leis de regulação, mudanças de comportamento, novos projetos que buscam um “bem-estar digital”, etc – ainda é incógnita. Entretanto, podemos dizer: se o filme capturou um certo zeitgeist (espírito do tempo) dessa época de euforia e preocupação com as redes sociais online, ele também pode ajudar a fomentar iniciativas que possam mudar as regras do jogo tal como conhecemos hoje de dentro do sistema.

Na prática, e sendo talvez um tanto otimista e inocente, o documentário pode fomentar um cenário na sociedade civil de maior pressão para mais e melhores leis de regulação, já que essa parece ser uma receita cada vez mais retomada (porque proposta já há muito tempo) para cuidar dessa extrema liberdade que as big tech possuíram para construir seus impérios e criar o tal “dilema das redes” apresentado. Certamente há outras receitas para solucionar o dilema: a autonomia e a auto-organização da inteligência coletiva, a tomada dos meios de produção para a construção de tecnologias mais sensíveis e menos padronizadoras de comportamentos, o não esquecimento dos aspectos políticos, sociais e econômicos dos aparatos tecnológicos. Mas por enquanto mesmo anarquistas, centristas, comunistas ou liberais podem concordar que pelo menos algum tipo de regulação, fiscalização e ou controle para essas empresas pode ser desejável e inevitável.

Foto: Reprodução/Documentário “Dilema das redes” – Netflix

Vamos aos textos, seguindo a ordem em que foram publicados no Brasil. O primeiro é de Tatiana Dias, repórter e editora que cobre a área faz mais de 10 anos, publicado no The Intercept Brasil em 14 de setembro (de 2020). Como quase todos os textos posteriores (e esse nosso), há um reconhecimento dos méritos do documentário – ele “efetivamente desenhou o funcionamento dos algoritmos e da manipulação a que somos submetidos como ratos de laboratório” – e uma crítica à simplificação de alguns temas e ao que o filme escolhe ocultar. Há dois aspectos principais da crítica, que dizem respeito aos encaminhamentos propostos no documentário. O primeiro fala da escolha individual como uma solução para o “dilema das redes”.

“Não se trata de “escolher sair das redes”, mas de se opor a essa lógica e pressionar por regulação e transparência. Parece simples para um ex-executivo das big techs proibir o filho de ter qualquer contato com tecnologia (eles de fato fazem isso). Mas como falar isso para as crianças cada vez mais dependentes da tecnologia até mesmo para estudar num mundo que atravessa uma pandemia? Se os próprios governos usam essas plataformas para serviços públicos?”

O texto de Tatiana também aponta uma particularidade brasileira na questão do acesso. “O Facebook teve uma estratégia agressiva de expansão, com parcerias com empresas de telecom para oferecer acesso grátis aos seus serviços para a população de baixa renda. A pessoa contrata um plano de celular e leva o quê? Acesso ao Facebook, Insta e Zap de graça. Sem dados para outro tipo de navegação, para muita gente a internet se torna só isso. Criou-se um mercado do qual é praticamente impossível sair: as pessoas confundem internet com as interações que acontecem nessas plataformas, e toda a vida acontece ali.”

O segundo aspecto da crítica do texto publicado no The Intercept é a de que a solução para o tal dilema “não vai vir de centros para tecnologia humanizada em Stanford, mas de uma internet descentralizada e diversa por essência, feita por pessoas diferentes, baseada em outra lógica: redes comunitárias ou repositórios de conteúdos livres”, como apontamos aqui no BaixaCultura recentemente. “É um contrassenso”, afirma Tatiana, querer construir uma unidade ou senso de coletividade, ou mesmo ter uma conversa, se a plataforma naturalmente transforma um debate em uma rinha para lucrar com isso. Como também já sinalizamos aqui: o modelo de negócio de venda de dados e da economia de atenção, que ganha com o tempo que as pessoas passam em uma dada plataforma e a quantidade de interações (dados) produzidas, precisa ser alterado para que alguma mudança seja vista. Os esforços coletivos de construção de uma internet mais saudável são importantes, mas paliativos se esse problema estrutural não for atacado de alguma forma.

Foto: Reprodução/Documentário “Dilema das redes” – Netflix

Atacar esse problema estrutural é o que, precisamente, faz tanto o segundo quanto o terceiro aqui citado: respectivamente, “Não, as redes sociais não estão destruindo a civilização”, de Richard Seymour, e “ Não culpe as redes sociais, culpe o capitalismo“, de Paris Marx, ambos publicados na revista de esquerda Jacobin entre o final de setembro e o início de outubro – o segundo traduzido por Rafael Grohmann e Victor Wolffenbuttel, parceiro de muitos textos aqui. No primeiro texto, a crítica à “The Social Dilemma” é, primeiramente, irônica:

“Que mal as redes sociais podem fazer? Guerra civil! O fim da civilização como conhecemos! Esse é o veredito dos luminares renegados do Vale do Silício, reunidos no novo documentário da Netflix O Dilema das Redes (The Social Dilemma). Como o ex-empregado do Google, Tristan Harris coloca a questão, em um axioma bastante TED Talk, as redes sociais ameaçam dar um “xeque-mate na humanidade”. (…) Todos os vilões do techlash dos liberais estão aqui: fake news, ciberataque russo, ditadores estrangeiros, “atores ruins”, polarização política e adolescentes deprimidos. O Dilema das Redes põe um diretos de plataforma desiludido atrás do outro para entregar a mesma homília familiar, encenada através da história de fundo de uma família suburbana, que vive nos EUA, e vem sendo despedaçada pelo vício em redes sociais.”

E, depois, com viés marxista: “O que foi distorcido e tirado do lugar n’O Dilema das Redes para produzir esse pânico moral cinematográfico? O Capital. O documentário é bastante lúcido sobre os aspectos da indústria social e como ela funciona. Trata-se de “uma espécie de poder totalmente nova”. A indústria social não apenas nos monitora e nos manipula. Quanto mais nossas vidas sociais são gastas nestas plataformas, mais nossa vida social é programada.”

De uma perspectiva próxima, mas menos irônica, é o segundo texto publicado na Jacobin. Paris Marx fala do documentário como uma narrativa tecnodeterminista que acaba por inflar as capacidades de captura de dados e algoritmos e, assim, atribuir à tecnologia uma série de problemas que têm suas raízes nas condições sociais e econômicas mais fundamentais da sociedade moderna. Ao contrário do que normalmente se espera em uma narrativa tecnodeterminista, aqui a premissa básica é invertida: “Em vez da tecnologia tornar o mundo melhor, a maioria das pessoas do filme reconhece que coisas ruins estão acontecendo, mas dada a perspectiva que elas enxergam o mundo, o problema principal também deve ser tecnológico.”

Mesmo pessimista, a visão tecnodeterminista do documentário endossa a ideia do solucionismo tecnológico já abordada aqui: de que mais tecnologia vai resolver tudo, inclusive os próprios problemas causados pela tecnologia…Assim, Marx (o autor do texto) afirma que O Dilema das Redes exagera ao apontar que os efeitos negativos das redes sociais na sociedade são derivados apenas das plataformas que utilizam modelos de captura de dados e curadoria por algoritmos.

“Devemos acreditar que a polarização social é resultado do Facebook e não do fato de que a desigualdade de renda retrocedeu a níveis anteriores à Grande Depressão (e que possivelmente ficarão muito piores devido à pandemia)? Devemos acreditar que a desconfiança com as elites e com os políticos é fruto dos resultados de busca do Google, e não do fato de que o sistema político não está respondendo às necessidades da vasta maioria da população, enquanto o governo deixa a indústria se autorregular, acarretando em tragédias como o Boeing 737 MAX?”

A crítica de Marx na Jacobin chega a uma solução para o dilema das redes: destruir (ou modificar?) o capitalismo. Uma resposta, como se sabe, que é muito comum nos diagnósticos dos diversos problemas que acometem o mundo neste 2020, mas que, em alguns casos, pode paralisar diante do tamanho e da dificuldade da tarefa: será mesmo possível acabar com o capitalismo e salvar a internet? Felizmente Marx aponta alguns caminhos, próximos aos mencionados por Tatiana e por nós mesmos aqui no BaixaCultura: “precisamos reconhecer que a internet foi um produto de pesquisa e financiamento público. Para melhorá-la, talvez seja necessário retornar a uma estrutura não comercial, em que as empresas públicas possuam as infraestruturas-chave, as cooperativas operem uma variedade de plataformas com incentivos muito diferentes e sem fins lucrativos, e as pessoas comuns possam colaborar em novas ferramentas digitais sem que haja um imperativo comercial. Mas isso também exigirá mudanças nas estruturas políticas e econômicas mais amplas.”

Foto por Oladimeji Ajegbile em Pexels.com

Por fim, o quarto texto que trazemos aqui para tratar de “O Dilema das Redes” é de Clara Lage, filha do jornalista e conhecido teórico do jornalismo Nilson Lage, em seu blog Moinho. Matemática, pós doutoranda na École Polytechnique de Paris com trabalho com Otimização e Estatística, Clara também fala do “mérito técnico e da fácil compreensão” do documentário, que apresenta ex-engenheiros de altos cargos em grandes empresas de tecnologia, especialmente as GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon), que testemunham seus impasses éticos com seus antigos trabalhos. Nesse aspecto, ela traz uma observação interessante: “embora os engenheiros programem os algoritmos que regem as redes, eles não são capazes de prever seu comportamento quando apresentados à quantidade colossal de dados que recebem. Nesse ponto, a própria estrutura de funcionamento do chamado deep learning dificulta o diagnóstico sobre os efeitos sociais desses algoritmos. A consciência do potencial destrutivo dessa ferramenta chega pelas próprias consequências sociais e individuais, e a percepção negativa das empresas cresce à medida que esses problemas ganham notoriedade.”

Depois, Clara faz críticas políticas parecidas à dos textos anteriores sobre as escolhas do filme, a começar pelos próprios personagens ouvidos: “Ao priorizar ex-engenheiros (brancos e do norte global) que ajudaram a criar os tais aparatos tecnológicos, a impressão que deixa o documentário é de que a percepção do potencial danoso na atual configuração das grandes empresas de tecnologia é recente e que a descoberta parte essencialmente das próprias pessoas que criaram esses algoritmos”. Sabemos que não é uma descoberta recente: a luta por algoritmos/códigos transparentes remete pelo menos ao final dos anos 1970 com o software livre, citado por ela no texto, que há quase 40 anos vem falando que programas de computador – como certos bens culturais, e os comuns – não podem ser fechados e privatizados com vias de apenas explorar o lucro possível esquecendo sua função social como conhecimento produzido pela humanidade.

Clara cita a questão também a questão dos monopólios de comunicação e tecnologia, propulsionados pela desregulação neoliberal dos anos 1980, e que formam o caldo que resultaria na construção geopolítica da internet tal qual conhecemos hoje – e, bom retomar, criticada de modo quase pioneiro em “A Ideologia Californiana” de Barbrook & Cameron em 1995.

Por fim, o texto aponta para como é sintomático o fato de restar tão pouco tempo para a última parte, em que o documentário pretende desenvolver as soluções para o caos apresentado. “Sem um horizonte possivelmente mais utópico, mas mais instigante, de “softwares livres”, ou mesmo a esperança de um ambiente menos feudal para as redes – onde a terra é dividida entre gigantes – restam algumas palavras sobre regulamentação, mudança no bussiness model e importantes atitudes individuais, como desativar as notificações dos aplicativos”. É certo que não há horizontes fáceis e prontos para serem apontados, mas ao olhar para o passado poderíamos aprender a não apostar em um uma saída que não seja política e coletiva e a não esperar da tecnologia somente soluções mágicas e falsamente neutras.

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Breque dos APPs e as alternativas para o trabalho digitalizado https://baixacultura.org/2020/07/17/breque-dos-apps-e-as-alternativas-para-o-trabalho-digitalizado/ https://baixacultura.org/2020/07/17/breque-dos-apps-e-as-alternativas-para-o-trabalho-digitalizado/#respond Fri, 17 Jul 2020 16:09:36 +0000 https://baixacultura.org/?p=13211

Foto: Rafael Vilela/Mídia Ninja

A pandemia exacerbou a já visível exploração de trabalhadores por parte de plataformas digitais como Rappi, iFood e Uber Eats. O Breque dos APPs, realizado em 1 de julho de 2020, foi um começo de organização da luta desses profissionais, que se espalhou Brasil afora e promete seguir forte. Criou-se o cenário para refazer uma pergunta feita há tempos: há alternativas à estas plataformas?

Não é nenhuma novidade que o distanciamento social como medida pública de saúde para conter o avanço do covid-19 aumentou a demanda pela entrega de refeições e alimentos em casa. Ao mesmo tempo, na outra curva da equação, com a economia estagnada e taxas de desemprego que já vinham crescendo e agora explodiram, a quantidade de desempregados migrando para a função de “autônomos” também aumentou.

No meio destas duas variáveis ascendentes, estão as plataformas digitais, embutidas de algoritmos supostamente neutros que servem para conectar ofertantes e demandantes. Mas é sabido que não é apenas para fazer essa relação que as plataformas funcionam. Nesta função de conexão, as empresas donas dos aplicativos são proprietárias do código que liga o cliente ao prestador e determinam o preço cobrado pelo serviço baseado em uma lógica interna desconhecida tanto dos usuários quanto de quem o utiliza para trabalhar.

No caso dos apps de entregas, durante a pandemia foi percebida a queda no valor recebido por entrega, possivelmente devido ao aumento no número de pessoas que passaram a trabalhar como entregadores. Ou seja: diminui o número de entregas por entregador e o valor pago por entrega, fazendo com que trabalhadores passem agora mais de doze horas por dia rodando para receber o sustento necessário. Ninguém além das próprias empresas sabem com qual razão é calculada a diminuição da comissão por entrega e o quanto a quantidade de entregas ou de pedidos por dia influencia nesta composição. A mesma coisa acontece com aplicativos de motoristas e outras categorias.

A paralisação dos entregadores de aplicativos (Breque dos Apps, em 1/7) escancarou a relação exploratória entre plataformas e trabalhadores. Como diz Paulo Lima, conhecido como Galo (@galodeluta), já uma figura requisitada na mídia (alternativa) brasileira, “A alimentação é a coisa que mais dói, ter que trabalhar com fome carregando comida nas costas” (em “Superexplorados em plena pandemia, entregadores de aplicativos marcam greve nacional”).

Grupos de entregadores de aplicativos em diversas cidades do país e de outros países da América Latina se uniram para reivindicar condições mais justas de trabalho: refeições, EPIs e álcool gel para atender clientes durante a maior pandemia do século, e maior comissão por entrega, que permita trabalhar menos horas, entre outras reivindicações por condições melhores (que deveriam ser básicas) de trabalho.

Desde o início, as plataformas mantêm o mesmo argumento: não são empregadores, portanto não tem obrigação com os ofertantes. Conectam pessoas que querem um serviço com outras que oferecem o serviço, e só. Mas se são apenas atravessadores, como podem, por exemplo, definir o preço praticado online, debitar despesas da conta dos entregadores e motoristas, e até mesmo praticar o boicote velado a seus ditos “colaboradores”? Há mais variáveis neste serviço que apenas a conexão.

Em um paralelo com a gestão competitiva e manipuladora que já era feita no Brasil com revendedoras por empresas de cosméticos, a pesquisadora Ludmila Abílio (2020) sintetiza a interação dos entregadores, motoristas e demais prestadores de serviço com as plataformas digitais: “submetido a um gerenciamento obscuro e cambiante que define/determina quanto ele pode ganhar e quanto tempo terá de trabalhar para tanto, o trabalhador estabelece estratégias de sobrevivência e adaptação, visando ao mesmo tempo decifrar, adequar-se à e beneficiar-se da forma como o trabalho é organizado, distribuído e remunerado”. Em resumo: precarizado, o trabalhador adere, não é contratado. Como diz Galo: “Quem faz nossos horários são nossas dívidas“.

A urgência do tema não é novidade. O capitalismo de plataforma introduziu uma nova roupagem à precarização do trabalho, agora rebatizado de “empreendedorismo”, barrando até mesmo a possibilidade de trabalhadores reivindicarem direitos judicialmente. Mas a percepção que os autônomos têm do funcionamento destas plataformas vêm mudando conforme o entendimento sobre a relação injusta com o aplicativo aumenta. Em diversos países surgem iniciativas de organização entre os trabalhadores de  aplicativos, em níveis de articulação regional, nacional e internacional.

Tanto as paralisações programadas quanto as ações destas novas organizações de trabalhadores ainda não podem ser consideradas como bem articuladas em suas propostas e ações. Rafael Grohmann e Paula Alves, do DigiLabour, dizem em matéria na Jacobin Brasil que “é inútil, e contraproducente, exigir um movimento pronto – fast food – sem contradições ou com todas as soluções “para ontem”. O movimento real está em plena construção.”.

Este movimento desponta em tempo real para três frentes. A primeira, claro, para novas paralizações: há outra nacional marcada para o dia 25/7, que continua exigindo o aumento do valor por km, do valor mínimo da entrega, o fim dos bloqueios do entregador nos aplicativos, o fim da pontuação e restrição de local, seguro de roubo, de acidente e vida, e equipamentos de proteção contra a covid-19. Se for do mesmo tamanho da primeira, que ocorreu em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Fortaleza, Belo Horizonte, Recife e algumas cidades do interior, fortalecerá uma revolta que teve apoio popular e alguns resultados expressivos nos reviews e notas dos principais apps, que nesse dia tiveram um pico negativo.

A segunda diz respeito à organizações representativas dos trabalhadores para reivindicar direitos junto ao poder Público; já há conversas na Câmara dos Deputados sobre isso. Aqui há uma grande incógnita (e uma certa esperança, especialmente na esquerda) de como será a relação destas organizações com os sindicatos, de modo geral engessados no século XX em seus métodos de representação e em muitos casos subordinados à partidos políticos. Grohmann e Alves citam, no texto da Jacobin, a Asociación de Personal de Plataformas (APP), na Argentina, Independent Workers’ Union of Great Britain (IWGB), na Inglaterra, e #NiUnRepartidorMenos, do México, como alguns exemplos de como os trabalhadores estão se organizando de maneira próxima a de sindicatos. No mesmo texto, há a informação de que no Brasil, só entre os motoristas, já há 18 sindicatos e associações, o que denota também um crescimento de organização dos entregadores por aqui.

Outro movimento que mostra esse crescimento foi realizado em junho de 2020: a primeira conferência digital global de trabalhadores da chamada “economia de plataforma” (ou capitalismo de plataforma, entre outros nomes). Foi organizada por, entre outros, a Taxi Project 2.0, uma iniciativa de origem espanhola que está agregando diversos outros grupos do país e da Europa ligado aos serviços de transporte de passageiro, como Uber e Cabify, mas também dos apps de entrega.

A terceira frente surgida a partir da movimentação dos entregadores de apps é a que mais nos interessa aqui: soluções para o trabalho digitalizado. Há as soluções de alternativas organizacionais em que, por exemplo, a plataforma é autogerida ou cooperativa. Nesse aspecto, o cooperativismo de plataforma (da qual já falamos aqui) surge como alternativa ao modelo das plataformas privadas. Aproveita-se a tecnologia mas redefine-se a propriedade sobre o algoritmo e sobre os dados: são os próprios ofertantes e demandantes que são donos e operam a plataforma, sem a necessidade de atravessadores com interesses próprios e propostas injustas.

O documentário Reclaiming Work, de Cassie Quarless e Usayd Younis, da produtora Black & Brown Film, apresenta cooperativas de entregadores (de bicicleta ou motoboys) que oferecem uma alternativa às gigantes Deliveroo [aplicativo de entrega de comida britânico] e Uber. La Pájara, uma das cooperativas que aparecem no documentário, foi formada após alguns onda de protesto contra a Deliveroo em Madri. Em Barcelona, há a Mensakas, que desenvolveu sua própria plataforma e que prioriza redes de economia solidária na circulação de alimentos e outros produtos para a população catalã. Em debate organizado pela Fundação Rosa Luxemburgo no dia 16/7, Galo de Luta comentou que os Entregadores Antifascistas, coletivo que tem puxado o #BrequedosApps no Brasil, está se organizando enquanto cooperativa, com vias de produzir seu próprio aplicativo. Ainda sem plataforma, há alguns anos funciona em Porto Alegre a Pedal Express, coletivo organizado horizontalmente de entregadores de bicicleta.

Cooperativas como a La Pájara ou a britânica York Collective  são apoiadas por uma federação ainda mais ampla, a CoopCycle — uma “cooperativa de cooperativas” sediada na frança com atuação na Europa e na América do Norte. A organização criou um software que pode ser utilizado por quaisquer interessados em iniciar uma cooperativa de entregadores – para garantir que o negócio não seja cooptado, a licença de utilização do software, chamada não por acaso de Coopyleft, só é permitida para iniciativas que sigam o modelo cooperativo. Desta forma, buscam garantir que a tecnologia está nas mãos dos próprios entregadores cooperativados, uma decisão que retoma a posse dos dados e das tecnologias utilizadas, o que descentraliza a propriedade e ajuda a combater os monopólios que fizeram da rede hoje um grande jardim murado controlado por poucos e criaram a “ressaca da internet” que comentamos aqui faz dois anos.

 

Os principais componentes da Coop.Cycle incluem software, aplicativos para smartphones, mapeamento, seguros e construção de alianças com potenciais fornecedores, oferecidas a qualquer cooperativa que entre para a rede. Esse é um elemento fundamental para que, de saída, essas cooperativas possa disputar o mercado de Apps multinacionais como Rappi, Uber e iFood, pois a partir dessa tecnologia é possível reunir grupos e cooperativas, como o La Pájara ou o York Collective, com trabalhadores isolados e conectar estes com os clientes e fornecedores de alimentos. Há também outras plataformas digitais de propriedade dos trabalhadores ligadas ao Cooperativismo de Plataforma que estão buscando fazer, em diferentes áreas, esforços parecidos, muitas listadas nesse diretório.

As cooperativas tem como método de financiamento a contribuições dos trabalhadores, definidas e compartilhadas, em tese, de maneira transparente. A gestão de uma plataforma cooperativa é, portanto, democrática, fornecendo não apenas uma voz aos trabalhadores, mas profissionalizando de verdade seus trabalhos dentro da “Economia de Bicos”, e dando a eles o controle de como isso é definido. Os trabalhadores também ganham proteção real na forma de seguros e de representação legal que, na maioria dos casos, são inexistentes nas plataformas convencionais.

Há, ainda, diversas limitações práticas para construir cooperativas, em especial na área de tecnologia. A cultura predominante não é propícia a isso, muito menos os modelos de negócios e financiamento predominantes; no Brasil, porém, uma cooperativa nessa área é modelo de atuação e prestação de serviços há alguns anos: a Eita, que desenvolve tecnologia em diálogo com movimentos sociais populares, redes e instituições de pesquisa e já fez plataformas de mapeamento de feiras orgânicas e o aplicativo de consumo responsável Responsa, entre outros projetos. Há um longo caminho a percorrer para que esse tipo de cooperação possa ter uma chance real de desafiar as grandes plataformas, mas usar a tecnologia para ajudar os trabalhadores a desfrutar (e tomar) os meios de produção parece ser um caminho possível para reconstruir uma economia em prol do bem-comum.

[Leonardo Foletto e Victor Wolffenbuttel]

 

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Acreditamos:
Na democratização do conhecimento.
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Na cultura livre e em licenças que permitam mais autonomia dos criadores.
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No remix, porque nunca criamos do nada, sempre a partir de outros.
Em abrir as caixas-pretas das técnicas, das práticas, dos produtos e do ensino.
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Na criptografia, na documentação dos processos e dos produtos.
Na justiça social, na economia solidária e, sobre

COLABORADORES

Editor

Leonardo Foletto

Editor

Leonardo Feltrin Foletto nasceu em Taquari (1985), no interior do Rio Grande do Sul. É jornalista formado pela UFSM, mestre em jornalismo (UFSC) e doutor em Comunicação e Informação (UFRGS). Trabalhou como jornalista nos jornais A Razão, em Santa Maria-RS, e na Folha de S. Paulo, participou da Casa da Cultura Digital e do coletivo BaixoCentro em São Paulo. É integrante das redes das Produtoras Colaborativas, do coletivo ciberativista CCD POA, do Creative Commons Brasil e colaborador do hackerspace Matehackers. Deu aulas de comunicação, narrativas e tecnologia na PUCRS, PUCSP e UCS (Caxias do Sul) e desde março de 2017 é doutor em Comunicação e Informação pela UFRGS, onde pesquisou comunicação, tecnologia e jornalismo. Foi um dos idealizadores do BaixaCultura e edita a página desde sua criação, em setembro de 2008. Publicou em 2021 “A Cultura é Livre: Uma história de resistência antipropriedade“, livro co-editado pela Autonomia Literária e Fundação Rosa Luxemburgo, com préfacio de Gilberto Gil. Site pessoal em leofoletto.info

Calixto Bento Calixto Bento é mineiro de BH, morou em Manaus (AM) e atualmente vive em Santa Maria (RS). Capitaneou a reforma gráfica da página em janeiro de 2011, e desde então é o editor de arte, o cara para assuntos gráficos & arte-tecnologias. Mestre e doutorando em arte e tecnologia pela UFSM, trabalha com a influência de dados no audiovisual.

Sheila Uberti é comunicadora. Foi permacultora de experiência e comunidade no APOIA.se e realizou os encontros do Café Reparo na região Sul do país. Foi a idealizadora do Fotolivre.org (projeto de experimentação virtual e presencial sobre fotografia hacker e livre) e produziu o Fauna Festival. Participou do coletivo ciberativista Casa da Cultura Digital Porto Alegre, do Hackerspace Matehackers e de outras iniciativas às quais não consegue resistir. Por aqui, participou junto das oficinas de Cultura Livre, Guerrilha da Comunicação, Como Documentar um Projeto Cultural e no registro documental (em foto e vídeo) de alguns projetos e publicações.

Reuben da Cunha Rocha nasceu em São Luis (MA). Poeta e tradutor, foi um dos fundadores do BaixaCultura. Cessou sua participação rotineira em 2009, quando começou sua colaboração esporádica. Sua obra pode ser vista em cavalo DADA. Vive em São Paulo.

Marina de Freitas é engenheira física e mestre em ensino de física pela UFRGS. É natural de Santo Ângelo, na região das missões, noroeste do RS, e tem aproximado da ciência cidadã e do hardware aberto a partir de sua colaboração no CTA-UFRGS. Escreve sobre ciência aberta, hardware livre e biohacking a partir de 2018.

Victor Wolffenbüttel é estudante de administração de Novo Hamburgo/RS. Escrevee sobre tecnologia e cultura, criador e editor da newsletter literária Quasar, e aqui faz um trabalho, a partir de 2018, de arqueólogo da web resgatando e detalhando ferramentas como o RSS.

Luis Eduardo Tavares é cientista social, pesquisador em tecnologia, comunicação e cultura. Colaborador do Instituto Intersaber e parceiro nosso de muitos projetos, entre eles a Biblioteca do Comum, criada em 2017. Escreveu sobre propriedade intelectual e o CopyLove espanhol, entre 2011 e 2012.

Tereza Bettinardi é designer. Formada pela Universidade Federal de Santa Maria, trabalhou na Editora Abril e fez trabalhos pra Cosac Naify, Cia das Letras e diversas outras editoras brasileiras e internacionais. Hoje é uma das responsáveis pela A Escola Livre, espaço de discussão sobre novas formas de fazer e ensinar design. Fez o design do zine nº2, “La Remezcla”. Seu trabalho está em terezabettinardi.com

André Solnik é paulista, mas não é tucano. É formado em jornalismo, mas tá desempregado. É palmeirense, mas isso vamos deixar pra lá. Abandonou o Windows há quase uma década, mas sente falta daquele joguinho de ski. Toca a Ratão, que auxilia “usuários comuns” na transição do Windows para o GNU/Linux e divulga a filosofia do software livre por aí. E por aqui, fez algumas entrevistas e escreveu alguns posts que você achar colocando seu nome nas buscas.

Lucas Pretti é jornalista, ator e produtor cultural, mestre em artes pela UNESP (2017). Como jornalista, foi repórter do caderno Link (O Estado de S. Paulo), daí chefe de reportagem do Divirta-se e então editor de cultura do portal Estadão.com.br. Deixou o jornal para integrar a Casa da Cultura Digital. Também estuda arte e teatro. Formou-se ator no Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do SESC-SP, com o diretor Antunes Filho, e pesquisa a relação teatro e internet no projeto Teatro Para Alguém, finalista do Prêmio Shell de Teatro em 2009. Foi um dos realizadores do projeto Produção Cultural no Brasil e do BaixoCentro. É diretor na Change.org Brasil.

Marcelo De Franceschi dos Santos nasceu em São Sepé (RS). É jornalista (Universidade Federal de Santa Maria, 2011). Escreveu na página de setembro de 2009 até fevereiro de 2012.

Edson Andrade de Alencar nasceu em São Luis (MA), e vive na ilha maranhense até hoje, onde é advogado de carteirinha da OAB. Escreveu os textos mais provocativos do BaixaCultura até meados de 2009.

2008

Nascimento

Nascemos em 2008, por uma iniciativa de dois jornalistas que na época se encontravam em Florianópolis e queriam produzir relatos focado em produtos culturais que pudessem ser consumidos (apreciados, fruídos, curtidos mesmo) na rede. Aos poucos, a vasta discussão em torno das possíveis e impossíveis mudanças na forma de se praticar (fazer, distribuir, consumir) cultura após a popularização das mídias digitais se tornou o foco. Nos anos seguintes, download, pirataria, copyleft, contracultura, produção Independente, contra-Indústria, software livre, remix, cultura hacker e ciberativismo foram sendo nossas tags principais.

2009

Produzimos 4 ciclos de filmes (nomeado “copy, right?“em São Paulo, Santa Maria-RS e Porto Alegre) entre 2009 e 2013, relacionados à cultura livre, a favor do compartilhamento, do copyleft e da democratização da comunicação e do conhecimento.

2010

Em 2010, já em São Paulo, entramos para a Casa de Cultura Digital, hub de ideias (pessoas, produtoras, ongs, agências, hackerspace) que marcou a cultura (então) digital brasileira. Ali, participamos da comunicação do II Fórum de Cultura Digital (2010) e do Festival CulturaDigital.br

2011

Ajudamos a fazer acontecer o Festival BaixoCentro, que reuniu diversas atividades colaborativas para "hackear" as ruas de uma região da cidade

2012

Viajamos pela primeira vez com o Ônibus Hacker, um hackerspace sobre rodas que viajou por vários lugares do Brasil e da América Latina (depois tiveram várias outras viagens)

2013

lançamos nosso Selo Editorial com a publicação do primeiro livro, “Efêmero Revisitado: Conversas sobre teatro e cultura digital”, produzido a partir de uma bolsa de pesquisa em mídias e artes digitais da Funarte.

2013

Voltamos ao sul, agora Porto Alegre, em 2013, e dali passamos a fazer parte de redes e projetos com a América Latina, como o II Congresso de Cultura Livre no Equador, em 2013.

2016

Uma rede que se formou no I Congresso Online de Gestão Cultural #Gcultural, que coproduzimos com mais 5 coletivos de Uruguai, Bolívia, Espanha e México em 2016

2016-2017

Em março de 2016, fomos contemplados no programa de intercâmbio do Ibercultura Viva. Em conjunto com o ZEMOS98, coletivo baseado em Sevilla parceiro nesse processo, o projeto mapeou e documentou o trabalho de coletivos de artivismo y cultura livre da Espanha

2017

Em 2011, ganhamos também nosso primeiro financiamento externo para a manutenção do site, do ProAC do governo do Estado de São Paulo, e daí nasceu nossa Biblioteca (que em março de 2017 se juntou a Biblioteca do Comum) e nossa BaixaTV, um acervo de informação único sobre cultura livre no país.

2018

“A Ideologia Californiana”, de Richard Barbook e Andy Cameron, foi o nosso próximo lançamento da coleção de zines "Tecnopolítica". Com introdução do editor do BaixaCultura, Leonardo Foletto, e tradução de Marcelo Träsel, é uma parceria com a Editora Monstro dos Mares

2018

Resultado da rede de Cultura Livre formada anos antes, o Encontro de Cultura Livre do Sul Global, em 2018, reuniu diversos coletivos do continente para conversar sobre o status quo da cultura livre

2020

Em 2020 nosso editor, Leonardo Foletto, trabalhou num livro que é uma espécie de legado do BaixaCultura: “A Cultura é Livre: Uma história de resistência antipropriedade”, co-editado pela Autonomia Literária e a Fundação Rosa Luxemburgo, com prefácio de Gilberto Gil.

2021

Os “Manifestos Cypherpunks” é a segunda publicação da coleção “Tecnopolítica”, coordenada pelo BaixaCultura e a Editora Monstro dos Mares. O livro reúne alguns dos primeiros alertas contra a vigilância massiva na era da internet, manifestos escritos no final dos anos 1980 e no início dos 1990. Financiado via Crowdfunding, numa campanha que chegou a 732% do valor inicial pedido, com o apoio de 247 pessoas e coletivos e mais de 500 exemplares impressos.

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Todas as músicas em domínio público https://baixacultura.org/2020/05/11/todas-as-musicas-em-dominio-publico/ https://baixacultura.org/2020/05/11/todas-as-musicas-em-dominio-publico/#comments Mon, 11 May 2020 11:03:26 +0000 https://baixacultura.org/?p=13196

Em 1997, uma banda chamada The Verve lançou a música “Bittersweet Symphony“, hit dos anos noventa indicado e vencedor de vários prêmios de música pop. Um extremo sucesso, tanto que é executada em rádios do mundo até hoje. A música começa com uma orquestra tocando um riff que está na cabeça de todo mundo que já ouviu pelo menos uma vez.

Este riff foi feito pelos Rolling Stones em 1965, em uma música qualquer deles, chamada “The Last Time“. O The Verve usou um sample de uma versão orquestrada da música, feita em outra ocasião para um songbook dos Stones. A gravadora da banda, sabendo que usariam um sample na música, pediu e recebeu a autorização para usar o trecho da original no seu sucesso. No entanto, tendo em vista o desempenho comercial estrondoso do single, um executivo cresceu o olho.

O ex-empresário dos Stones, detentor dos direitos das músicas da banda (percebam, o cara não é nenhum artista) processou o The Verve, alegando que o sucesso do hit era devido aos Rolling Stones, e que a banda tinha usado “mais que o autorizado” na música. O empresário ganhou e todos os direitos sobre a música, independente de ela ser completamente nova, passaram a ser dos Rolling Stones. Somente em 2019 Richard Ascroft (foto acima), co-fundador e vocalista do Verve, teve o direito pela música recuperado.

A indústria da música, talvez por ser o meio artístico mais popular da sociedade, é terreno da maioria dos casos de processo por direito autoral que conhecemos. As limitações criativas que o próprio meio da arte impõe em melodia também propiciam argumentos: são doze notas na música, sete tons e cinco semitons, e a partir disso podemos imaginar que existe uma quantidade limitada de coisas novas que se pode criar em termos de canção e melodia. Por maiores que sejam as possibilidades, elas têm um limite – menor que na literatura, por exemplo, onde as letras e palavras permitem mais combinações.

Poderíamos estender essa argumentação por mais parágrafos. Parece meio estranho, pra dizer o mínimo, que um artista diga “ei, eu inventei este pedaço de sons nesta sequência e por isso ele é meu”, ou “ei, esta frequência e timbre são exatamente da minha guitarra e por isso esta música é toda minha”, mas é o que acontece.

Apesar de artistas buscarem expandir as barreiras impostas pela melodia através de novos recortes, ritmos e arranjos, mesmo assim a indústria consegue fechar novas criações em velhos modelos, como já reportamos em casos de “plágio” por aqui, o que incitou também rebeldia musical, caso da plunderfonia, um dos momentos ilustrados da história da recombinação trouxemos aqui.

E é uma luta unicamente econômica. Se eu tivesse feito uma música, ano passado, exatamente igual ao novo hit da Anitta desta semana, eu poderia processá-la? Sim, se eu fosse capaz de arcar com as despesas. Eu ganharia? Provavelmente não. Ou se sim, em uns 30 anos. Agora, se experimentarmos o contrário pra ver o que acontece: lançamos uma música que se parece com algum hit da Anitta. Em três minutos recebemos uma intimação da Sony Music, ou Disney, ou sei lá qual gravadora, mandando tirar do ar ou pagar os royalties, além da difamação por ter copiado outro artista.

Acontece que, por mais que algum dia quisermos ser originais em se tratando de música, esbarraríamos no número de notas limitado, no número de frequências audíveis limitado e nas regras harmônicas, que nos conduzem por caminhos pré determinados. Cientistas estudam sequências de acordes e por que algumas nos dão a sensação de inacabadas ou acabadas; por que uma nota menor parece triste, e outra maior parece alegre. A coisa é tão reativa para nossos sentidos que boa parte da música pop foi escrita a partir das mesmas sequências e nem por isso nós comparamos “In the Airplane Over the Sea” do Neutral Milk Hotel com Friday da Rebecca Black.

Foi pensando nestas limitações e neste cenário mercadológico predatório que dois programadores resolveram propor uma solução para evitar que qualquer músico seja inibido a compor pela possibilidade de ser processado por alguma gravadora ou artista oportunista. Damien Riehl e Noah Rubin se uniram para gerar um código que registrasse todas as possibildades de melodias. Eles tomaram as oito notas dentro de uma oitava (um intervalo de frequência definido) e todos os doze intervalos possíveis (a cada trecho do intervalo é marcado um tom ou semitom) para compô-las, e registraram estas melodias em arquivos .midi – um formato que registra todas as características das músicas (mas não como áudio), o equivalente digital a uma partitura.

Depois de gravar todos os arquivos em um HD externo, as músicas foram registradas pelos autores como sua propriedade sobre licença Creative Commons Zero – o que significa que elas estão em domínio público, e ninguém pode reinvidicar direitos patrimoniais (de exploração comercial) sobre a obra – e disponibilizadas no site All the Music.

Qualquer artista agora pode escrever qualquer música, e se for processado, alegar que na verdade estava sendo influenciado por Damien e Noah. É uma defesa válida. Ao mesmo tempo, a partir da data em que as melodias foram registradas, os dois passam a ser detentoras destas, e nenhuma música nova pode ser plagiada por outra mais nova ainda.

Juristas estão se perguntando se isso funcionaria em um caso real, mas a verdade é que o que os dois criadores do All the Music demonstraram é que não faz sentido nenhum alegar propriedade sobre uma sequência de sons. O projeto já está sendo expandido para uma quantidade maior de oitavas, até eventualmente zerar o problema.

Quantas músicas podem ser feitas sem uma lembrar a outra? Que artista pode escrever uma música sem ter ouvido outra antes? Como não se influenciar, nem mesmo de forma inconsciente? Registrar todas as músicas possíveis e caçar artistas de qualquer porte para coletar royalties só interessa a quem tem dinheiro para acessar um tribunal em cada caso destes. Música nenhuma é de alguém mais do que as fronteiras dela própria, e talvez nem neste caso, porque ela veio de alguma ideia antes disso.

O que Damien e Noah fizeram é uma provocação contra um mercado predatório e fadado a saturação. Esperamos que a reflexão se estenda para toda criação, e que a sua reprodução não seja tratada além da sua própria existência. Reprodução é obra nova, recombinação que o diga.

Ou você acha que esta música é responsável pelo sucesso desta música?

[Victor Wolffenbüttel]

 

[Continua nossa campanha de financiamento contínuo no Apoia.se. Buscamos recursos mensais para manter o BaixaCultura e seguir propagando a cultura livre & cobrindo tecnopolítica e cultura livre. A partir de R$5 mensais você garante a continuidade do nosso trabalho e recebe recompensas que vão de zines a cursos e oficinas. É fácil e rápido, aceita boleto também para quem não quer ter seus dados do cartão rastreados.]

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Como compartilhar conteúdo e fazer backup por torrent https://baixacultura.org/2020/02/18/como-compartilhar-conteudo-e-fazer-backup-por-torrent/ https://baixacultura.org/2020/02/18/como-compartilhar-conteudo-e-fazer-backup-por-torrent/#comments Tue, 18 Feb 2020 13:54:06 +0000 https://baixacultura.org/?p=13149

Fonte: Oficina da Net

Quando escrevemos o texto sobre como usar torrent e baixar conteúdo compartilhado grátis, pensamos nesse título como uma espécie de clickbait: queríamos que, em pleno 2019, o torrent fosse capaz de atrair novos usuários usando a velha tática de prometer alguma coisa grátis. Afinal de contas, o modus operandi da internet na última década se baseia nessa ideia, casada com um gerador de receitas oculto: eu te dou algo de graça e de fácil acesso e você nem desconfia do que me dá em troca – seus dados de utilização, usados para alimentar bases gigantes com diversas finalidades: aprimorar inteligência artifial, machine learning, publicidade direcionada e todo tipo de personalização com dados, que seja capaz de aprender e prever o comportamento humano, como bem já foi revelado sobre o modelo de negócios do Rappi, o qual usa a entrega de mercadorias (com operação deficitária) como fachada para seu verdadeiro objetivo, coletar uma vasta quantidade de informação sobre usuários para gerar mais comércio direcionado, mais segmentação produtiva.

Pensei: se estamos habituados a entregarmos nossas vidas de graça para algumas empresas de redes sociais ou serviços, em troca de contato com amigos, familiares, flertes, ídolos e rivais, por que não poderíamos usufruir do torrent para acessar qualquer arquivo que gostamos, de graça, através da cópia de arquivos entre máquinas? De muitos já ouvi que a barreira é efetivamente usar o torrent, baixar o programa e achar os arquivos, e entender por que às vezes ele baixa e às vezes não.

Pois bem, agora que já expliquei como funciona o programa, como achar arquivos, como interpretar o cliente de torrent e por que ele baixa ou não, posso explicar a segunda parte importante sobre usar torrent: como compartilhar arquivos, ou seja, como criar um arquivo torrent, hospedá-lo num repositório e semeá-lo. Escrevo então sobre como dividir aquilo que mais gostamos com outras pessoas, desde amigos até completos estranhos do outro lado do mundo, e geramos impacto real na rede, através da cópia. De lambuja, ainda subimos pra rede nossos arquivos, e assim que eles são copiados, estão disponíveis em outras máquinas, e tornam-se acessíveis em outros computadores da internet, gerando uma espécie de backup – desde que alguém semeie o arquivo, claro.

Antes de mergulharmos de cabeça na ação prática, ou seja, começar a criar e compartilhar arquivos torrent, gostaria de trazer uma ideia sobre o uso da tecnologia e o ponto em que estamos hoje, onde parece que nada aconteceu na internet antes dos aplicativos facilitadores. Especialmente àqueles que ainda não se convenceram de que vale a pena usar a tecnologia p2p para navegar na rede. O bielorrusso Evgeny Morozov, no seu ensaio Por que estamos autorizados a odiar o Vale do Silício, um dos textos publicados no Brasil no livro “Big Tech – A Ascensão dos Dados e a Morte da Política“, da editora Ubu, elabora: 
    
“[…] O Vale do Silício destruiu a nossa capacidade de imaginar outros modelos de gestão e de organização da infraestrutura da comunicação. Podemos esquecemos os modelos que não se baseiam em publicidade e que não contribuem para a centralização de dados em servidores particulares instalados nos Estados Unidos. Quem sugerir a necessidade de considerar outras opções – talvez até mesmo modelos já publicamente disponíveis – corre o risco de ser acusado de querer “quebrar a internet”. Nós sucumbimos ao que o teórico social brasileiro Roberto Mangabeira Unger chama de “a ditadura da falta de opção”: espera-se que aceitemos que o Gmail seja a melhor e única forma possível de usar o correio eletrônico e que o Facebook seja a melhor e única maneira possível de nos conectarmos em redes sociais.”
Em um país onde sete em cada dez brasileiros se informam pelas redes sociais, parece quase utópico imaginar o uso de torrent para dividir e consumir livros, revistas, filmes, séries, softwares, e qualquer tipo de arquivo que o usuário imagine compartilhar. E parte disso é porque estamos cegos pela ideia de que não há opção, como dito por Morozov. Por todos os lados, a lógica do serviço mais cômodo faz com que os usuários comuns busquem cada vez menos dificuldades, e a famoso conceito da inclusão digital passa a ser deturpado: a inclusão é junto as Big Techs, e não ao digital.
Então que viremos o jogo aprendendo a criar torrents!

Existem dois grandes passos no processo: criar o arquivo torrent e hospedar o arquivo torrent. Vamos abordá-los sob estes dois atos.

1) Criar o arquivo torrent

Fonte: Wikihow

Depois de decidir o que você quer dividir, seja uma pasta de músicas ou de fotos, um filme ou uma biblioteca de livros, entre no seu cliente de torrent (uTorrent, qBitTorrent, Transmission são alguns dos mais comuns, mas aqui tem uma lista recente com outros também) entre no menu Arquivo > Criar torrent.
Selecione a pasta ou arquivo, crie um nome, aponte onde deve ser salvo, aponte trackers (os rastreadores de arquivos, que mencionamos no artigo anterior) e gere o arquivo. Aqui uma lista de trackers que você pode usar, copiando os links e colando-os no espaço destinado a eles (como mostra a figura abaixo). Quanto mais melhor, pois mais deles vão encontrar o seu arquivo numa busca. 

Pois bem, aí está seu arquivo .tor! Você já pode enviá-lo para amigos, que podem abri-lo em seus clientes de torrent e baixá-los, desde que o seu cliente esteja aberto e copiando o arquivo para eles. Percebe: como criador do arquivo, você acaba sendo também o primeiro seeder, e é importante manter o torrent aberto e copiando para outros pelo menos nos primeiros dias, para o arquivo se espalhar pela internet.

2) Hospedar o arquivo torrent na internet

Com o primeiro passo seus amigos já podem desfrutar do seu arquivo torrent. Mas digamos que você tenha uma biblioteca que quer compartilhar, como no Baixacultura, onde geramos um compilado de todos os livros que foram referência durante o curso “Tecnopolítica e Contracultura” e disponibilizamos online. Nesse caso, há (pelo menos) duas opções: deixar ele em repositórios de torrent, como a baía pirata mais famosa e resiliente da internet, o Pirate Bay; ou começar a semear imediatamente, deixando o seu computador (e os próximos que baixarem) como semeadores e guardiões do arquivo, como mostra a figura acima,
Para compartilhar um arquivo no Pirate Bay, então: 
Crie uma conta; no menu de navegação, clique em “Upload Torrent”; procure o arquivo torrent que tu queres subir no seu computador; crie um nome para o arquivo no site (exemplo: Biblioteca do Baixacultura) – este é o nome que as pessoas vão achar quando procurarem pelo arquivo no site; escolha uma categoria (vídeo, livro, software, música, etc.); marque a opção ou não de subir o arquivo anonimamente; se quiser, marque o seu arquivo em tags para ser mais fácil de encontrá-lo; escreva uma descrição amigável, de preferência dizendo quais arquivos estão contidos no torrent, qual a qualidade e formato do arquivo, etc.

Aqui também vale de, ao enviar o arquivo, deixar seu computador “semeando” o arquivo por um tempo, pelo menos até que outros “leechers” já tenham baixado e passem a semear também; quanto mais semeadores, mais rápido o arquivo vai ser baixado e em mais computadores ele estará.

3) Divulgar o link na internet

Agora que você já criou o torrent, subiu na rede, semeou para outros e viu que outros já tornaram semeadores do arquivo também, espalhe ainda mais! Divulgue para todxs que queiram acessar o arquivo, mostre também que é importante que eles deixem seus programas de torrent um pouco para semear também para outros.

Fácil, não?

[Victor Wolffenbüttel]
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“Tecnologia é mato, o importante são as pessoas” https://baixacultura.org/2019/10/31/tecnologia-e-mato-o-importante-sao-as-pessoas/ https://baixacultura.org/2019/10/31/tecnologia-e-mato-o-importante-sao-as-pessoas/#respond Thu, 31 Oct 2019 16:07:33 +0000 https://baixacultura.org/?p=13031

Nossa terceira e última (de 2019) edição do curso “Tecnopolítica e Contracultura” ocorreu nos dias 24, 25 e 26 de outubro de 2019 na APPH, em Porto Alegre. Sala lotada, gentes diferentes, encontros bastante potentes! Agradecemos mais uma vez a todas/os presentes, à APPH pelo espaço de trocas que mantém e à Iuri Guilherme (Matehackers, Partido Pirata) e Janaína Spode, da CCD POA, por se disporem a participar como convidadas/os. Esta foi a última edição do curso em 2019, voltaremos em 2020!

Victor Wolffenbüttel, colaborador assíduo por aqui e também editor do webzine “à moda antiga” Quasar, de periodicidade quinzenal e enviado por e-mail, esteve no curso e escreveu algumas linhas que resumem a sua percepção desses três dias:

“O ditado diz que o professor faz a turma, e nesse caso posso afirmar que é bem verdade. A dose dupla de Leonardos veio densa, reflexiva e empática. A turma entrou no embalo e logo na primeira aula pudemos aproveitar da abertura que os mestres davam para compartilhar sobre o tema da aula, cada um com sua base.

Tecnopolítica e Contracultura, o curso, parece curto demais pra ser uma disciplina e longo demais pra ser um workshop, e justamente por isso entra no espaço perfeito pra te dizer que nem tudo está perdido e que nada está a salvo. Caí perfeitamente na provocação e saí pilhado pra fazer mais.

Como bem citado por um dos convidados do curso, parafraseando Daniel Pádua, “tecnologia é mato, o importante são as pessoas”, e este poderia ser muito bem o subtítulo do curso. Sabemos como já foi, como está sendo, e como pode ser a técnica, mas queremos mesmo é contagiar quem aparece no nosso caminho pra fazer uma realidade melhor.

Parecia tangível na atmosfera o clima de desconfiança com a internet, a ansiedade das redes sociais. Talvez seja uma impressão minha sobre todo lugar e não só ali, mas quando entramos no assunto dá pra perceber que não é pura paranoia, mas sim um fenômeno percebido. E que acreditar que a tecnologia vai nos salvar não basta.

Encerro este depoimento da mesma forma que o curso encerrou, citando a frase que serve de melhor ensinamento para os três dias de prática e teoria, através do autor que está desde o início até depois do fim da discussão, Franco Berardi: “a deserotização é o pior desastre que a humanidade pode conhecer, porque o fundamento da ética não está nas normas universais da razão prática, e sim na percepção do corpo do outro como continuação sensível do meu corpo. Aquilo que os budistas chamam de “grande compaixão”, ou seja: a consciência do fato de que teu prazer é meu prazer e teu sofrimento é meu sofrimento. A empatia. Se nós perdemos esta percepção, a humanidade está acabada.”

*

Enquanto isso, trazemos aqui algumas das muitas inquietações desses três dias organizadas em uma síntese poético-filosófica-existencial, trabalho em processo. E, ao final, referências na íntegra, as apresentações utilizadas e mais fotos.

Estamos frente ao esgotamento da relação público-privado. O tema mesmo é o comum, irredutível ao par público-privado e aos rituais de soberania. É cada vez mais gritante e urgente compreendermos o comum.
A água é um comum (commons), não porque cai do céu, mas porque é a força da cooperação social que fez e faz ela chegar, em tese, à casa de cada um. O comum é diretamente cooperação social, sociabilidade, riqueza comum.

Sabemos como (o comum) é usado para criar uma raridade artificial, precarizar e despotencializar – decompor as forças e  inviabilizar a autonomia. A metrópole, as vias, tudo: cooperação social estatizada ou privatizada. As próprias conexões sociais ao serem individualizadas (patrimonialismo individualista, ou individualismo patrimonialista, dá no mesmo), a proliferação dos contratos individuais (ou descontratualização, inviabilizando as representações sindicais e políticas coletivas). Esse poder sobre a vida, colocada toda a trabalhar: não reconhecida, não valorizada, não remunerada. Biopoder.
Esse o nosso tempo.

Precarização; decomposição; tentativa de Inviabilizar qualquer traço de autonomia e privatizar o comum.  Não mais via lucro, mas renda e impostos, ambos via financeirização (digitalização/informatização dos mercados de contratos, ou seja, mercados de dívidas e promessas de pagamentos, ou rentismo: juros, usura) aquilo que fez do sistema atual a fábrica d@s homens e mulheres endividad@s. Assentados nesse mercado de dívidas e na ‘convenção financeira’, ou seja, o uso da assimetria de informações para gerar o comportamento de manada, indução de desenvolvimento do comportamento gregário, mimético e egoísta, com base na memética, no meme, via aceleração da infosfera e criação de uma situação demencial.

O crédito de consumo aí tem um duplo papel: legitimar a desvalorização salarial e fidelizar o endividado. Endividamento individual e extorsão via arrecadação difusa por impostos e transferência rentista (pagamento de juros) via dívida pública. A governança se desloca inteira para o sistema financeiro: desloca-se a política des-democratizada.
Esse o quadro.

Quem afinal toma decisões e efetuar a chantagem de fazer obedecer? O que nos mobiliza (ativa interesses, quereres, desejos, vontades) é o que ao mesmo tempo nos interpela e adverte. Como as coisas, os eventos, o mundo, nos interpela e adverte ao mesmo tempo?
Essas são perguntas.

*

Conforme prometido, liberamos boa parte das referências, organizadas por pastas de acordo com as temáticas principais do curso – autonomia/operaísmo na Itália; Altermundismo, pós-operaísmo, anos 1990 e 2000; “hackers”; e “ressaca da internet” – usadas neste arquivo torrent (magnet link). Ajudem a semear que já fica de backup também.

A Biblioteca do Partido Pirata tem alguns textos complementares (ou não) que pode ser útil para quem quer ir fundo em alguns tópicos. A Biblioteca do Comum, projeto mantido pelo BaixaCultura e o Instituto Intersaber, também tem um bom acervo; é para lá que logo subir todo esse material do torrent.

Aqui a apresentação utilizada no curso em PDF (e em odp pra quem quiser remixar, com os devidos créditos).

As fotos abaixo foram feitas por Douglas Freitas, jornalista e fotógrafo, Alass Derivas no Instagram e Facebook.

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Como usar torrent e baixar conteúdo compartilhado grátis https://baixacultura.org/2019/09/18/como-usar-torrent-e-baixar-conteudo-compartilhado-gratis/ https://baixacultura.org/2019/09/18/como-usar-torrent-e-baixar-conteudo-compartilhado-gratis/#comments Wed, 18 Sep 2019 12:26:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=12988  

Em setembro de 2019, o CGI liberou novos dados sobre o uso da internet no Brasil. Já chegamos a 70% da população com acesso à internet, e 97% desse grupo faz isso via celular. O número disparou desde os últimos levantamentos, considerando que o acesso via celular e rede móvel propaga-se com muito mais facilidade que a distribuição via estrutura de telefonia fixa e máquinas de mesa. Em alguns lugares do país, é muito provável que se tenha internet via smartphone e 3G mas não saneamento básico. A maioria das pessoas utiliza a rede pra solicitar carros, comida, ou consumir música e vídeo por streaming, conforme dados da mesma pesquisa, que pela primeira vez reportou também como é utilizada a internet.

Mas a rede nem sempre teve essa configuração de acesso e uso.

Depois do surgimento da banda larga, quando os usuários ainda eram equipados por computadores e notebooks, a rede viveu um período de explosão de compartilhamento gratuito entre usuários, e que muitas vezes configurava pirataria de músicas, filmes, séries, livros, software e jogos de videogame.

Durante anos, a indústria sangrou, sofrendo com a pirataria, lutando judicialmente em busca da derrubada de sites, retirada de links piratas dos buscadores, e até denunciando usuários, que infelizmente eram feitos de exemplo para o resto da rede e podiam acabar presos ou recebendo multas estratosféricas por consumir conteúdo protegido pelo tão injusto direito autoral.

Demorou, mas apoiados pelo aumento da capacidade de servidores e da velocidade de conexão, os estúdios cinematográficos e gravadoras aprenderam que o usuário pirata estava disposto a pagar se tivesse acesso a essa possibilidade e apresentaram os serviços de streaming, usados hoje nos mais diferentes produtos (inclusive piratas, como o conhecido Popcorn Time), provavelmente por resolverem a questão com a solução mais fácil de todas: clicar e consumir instantaneamente.

Com a popularização desses serviços de streaming, no entanto, os membros do seleto oligopólio do entretenimento começam agora a bater cabeça. Artistas passam a assinar contratos exclusivos com serviços de streaming (como Beyoncé no Tidal), os grandes estúdios de filme passam a criar seus próprios streamings e barrar seus filmes dos outros (como é o caso da Disney, prestes a lançar o Disney+), e o usuário é obrigado a escolher entre Amazon Prime, HBO, Globoplay, Netflix ou Disney+, pra ficar apenas no audiovisual recente.

Nesse cenário, por motivos diferentes dos quais originalmente fizeram o compartilhamento livre tão popular, uma velha tecnologia reaparece com importância: o torrent, capaz de nos entregar, pelas mãos de outros amigos usuários, o conteúdo que a indústria quer que sejamos obrigados a escolher dentro de seus muros pagos.

Como o boom de acesso à internet veio depois dessa nova era, equipada por redes e aparelhos móveis, uma geração inteira de usuários não aprendeu a usar o torrent, e nunca teve interesse pelo compartilhamento gratuito e acesso indiscriminado de conteúdo protegido por direito autoral, uma discussão que já deu muito pano pra manga, e está passando por um novo período no Brasil, com uma consulta pública aberta recentemente, afim de reformular a Lei do Direito Autoral do país, uma das mais restritivas do mundo.

Pois então, está na hora de aprender a usar o torrent.

O que é exatamente Torrent

“Torrent” acabou virando verbo e sinônimo, o nome da tecnologia, do arquivo, do programa, do site e do processo de baixar arquivos. Tudo é torrent na cabeça de quem usa a tecnologia, e talvez por isso ela pareça tão misteriosa para quem nunca aprendeu como funciona.

Em termos técnicos, torrent é um protocolo de comunicação para compartilhamento peer-to-peer (P2P), utilizado para transmitir arquivos eletrônicos (definição via tradução livre da Wikipédia em inglês). Mas o que importa desse conceito é saber que torrent é o meio pelo qual usuários compartilham arquivos uns com os outros, através de suas máquinas.

O grande diferencial desse meio é o fato dele ser descentralizado, e não depender da conexão com um servidor que hospede toda a informação que se deseja acessar. Através do P2P, a máquina que quer receber o arquivo se conecta com diversas outras que já possuem o arquivo, e recebe pequenas partes dele vindas de cada um até ter o arquivo inteiro.

Digamos assim: em vez de pedir pra um amigo trazer o fardo de cerveja para o churrasco, solicito uma lata pra doze amigos, dividindo o fardo entre todos. O churrasco recebe a mesma quantidade de cerveja, mas o risco do amigo não trazer a dúzia e deixar todo mundo na mão é pulverizado nos doze participantes, que além de dividirem os custos do fardo, dividem a responsabilidade de fornecimento, numa parcela reduzida.

Como funciona o P2P (peer-to-peer)

Comparativo: rede P2P vs rede com servidor centralizado

É diferente de como utilizamos a internet normalmente. Em vez de entrarmos no navegador ou aplicativo, digitarmos um endereço e solicitarmos uma conexão com o servidor do site que buscamos, o qual entrega essa conexão baseado na velocidade do servidor único, acontece mais ou menos o seguinte:

  1. Entramos em um site que hospeda torrents (aqui estou usando o termo genericamente);
  2. Procuramos por um link magnético daquele arquivo que queremos baixar;
  3. Esse link magnético contém um arquivo .torrent com um código (chamado hash) que é aberto em um programa (chamado cliente);
  4. O cliente abre o link magnético e solicita que se escolha onde se deseja salvar o arquivo e quais partes dele queremos baixar;
  5. O cliente, que está servido dos rastreadores (chamados trackers), usa o hash para buscar todos os usuários que possuem uma cópia do mesmo hash em seu computador e estão com seu próprio cliente de torrent aberto, podendo copiá-lo;
  6. O cliente de torrent faz a cópia do arquivo para a sua máquina no local onde escolheu salvar.

Essa cópia de arquivo é feita simultaneamente em diversas máquinas, até centenas, caso seja algo que muitas pessoas estão compartilhando (digamos, o último episódio lançado de Game of Thrones).

Percebe-se que diversas partes desse fluxo que relatei acima não são realizadas pelo usuário, apenas fazem parte da tecnologia. O que o usuário precisa fazer mesmo é baixar um cliente de torrent, entrar num site de torrent, escolher o arquivo pra baixar, e selecionar onde salvar ele na máquina. Só isso basta pra começar a utilizar torrent, e são essas etapas que vou descrever abaixo.

Como usar: Passo 1 – Baixar um cliente de torrent

O cliente de torrent é o programa que tem que estar instalado no seu computador para abrir os links magnéticos de torrent. Como descrevi antes, é ele que consegue pesquisar o hash na rede e descobrir outros usuários que tem o arquivo que será copiado pra sua máquina.

Existem diversos clientes de torrent internet afora, sendo o mais famoso o uTorrent, o qual eu não recomendaria porque nos últimos anos teve alguns problemas de ramsonware em anúncios com Flash que rodavam dentro do programa, e por minerar criptomoedas no computador de usuários.

Utilizo o qBitTorrent, que é muito satisfatório, possui todas as funcionalidades necessárias, e não tem anúncios. Nessa lista temos ainda outras opções de clientes, o que pode ser útil para ajudar a escolher.

Como usar: Passo 2 – Entrar num site de torrents

Sites de torrents são como uma mato fechado que volta a se fechar muito rapidamente depois de aberta uma trilha. É preciso entrar a facão toda vez que se deseja utilizar, mas depois de certo tempo começamos a conhecer a rotina e fica fácil. O usuário de torrent acaba se acostumando com o fato de que sites são derrubados e reativados todos os dias, e aprende como pesquisar de forma a sempre achar o melhor arquivo.

Recomendo pesquisar sempre pelo site torrentz2.eu. Esse nome engraçado é porque é uma reanimação do finado site torrentz, que foi fechado por questões ainda desconhecidas.

O torrentz2.eu é um buscador de torrents. Pesquise por ali o arquivo desejado, e receba numa lista todos os sites que hospedam aquele arquivo. Eu recomendo sempre escolher aquele site que oferece o arquivo com mais seeds, que pode ser facilmente entendido olhando no número indicado ao lado direito do nome do arquivo.

A homepage do torrentz2. Podemos ver que ele contabiliza quantos arquivos .torrent estão sendo buscados por ele

Uma página de buscas do torrentz2. Nessa lista estão todos os arquivos torrent que tem algo a ver com o que você pesquisou. Após clicar, você é redirecionado para uma página que contém os sites que hospedam aquele arquivo. Aí é só escolher uma página e aguardar ser redirecionado.

 

Depois de selecionar um arquivo, ele abre esta página, onde aparecem todos os sites que hospedam o arquivo. Clique em um dos sites para ser redirecionado ao arquivo.

Confesso que depois que o torrentz renasceu com esse novo nome, me tornei meio dependente dele.  Durante alguns meses do ano passado, ele ficou desativado (também por razões desconhecidas até hoje), e passei algum apuro pra encontrar arquivos. Vida longa ao torrentz2.eu, portanto. Para evitar isso, aqui tem uma lista de sites variados de torrent.

É isso: você entrou no site, achou o arquivo desejado, clicou no link magnético, e escolheu o lugar pra salvar o arquivo. Agora deve-se aguardar o arquivo ser copiado pra máquina, conforme a velocidade de download que o cliente informa em tempo real.

Como usar: Passo 3 – Navegar em um site de torrents

Sites de torrent estão um tanto defasados, eu diria. É claro que como os mantenedores estão preocupados em manter o pescoço sobre a água, tentando manter no ar um site que serve de abrigo para muita pirataria, não sobra muito tempo pra pensar em user experience e layouts intuitivos. Provavelmente a vida de um mantenedor desses sites deve ser infernal – e tudo costuma ser feito por motivação pessoal e esforço próprio.

Aqui abro um parênteses: a perseguição contra os sites de torrent deve ser sempre combatida pelo usuário. Fundadores do Pirate Bay já foram até mesmo presos com acusações muito duvidosas de infringir o direito autoral, sendo que o site de torrent não é responsável por pirataria de forma alguma. Perceba que nenhum arquivo pirateado é mantido dentro dos servidores do Pirate Bay, por exemplo. Os arquivos estão nas máquinas dos usuários. O trabalho deles é fornecer a chave que conecta um usuário interessado em copiar de outro interessado em repassar o arquivo copiável. Depois de uma das derrubadas do Pirate Bay, que viriam a se tornar frequentes, surgiu o doc”Steal This Film”, onde fica clara a luta da indústria contra o torrent. Exibimos certa vez ambos os filmes no ciclo copy, right?, lá em 2009, em Santa Maria-RS.

Além do mais, o torrent não é pirata por natureza. Se o conteúdo for compartilhado com licença Creative Commons ou for de domínio público, ele também pode ser dividido por torrent. Nem todo torrent é arquivo pirata, e nem todo arquivo pirata é torrent. Aqui um adendo: com receio de ser rastreado, muita gente tem o costume de usar VPN ao baixar um arquivo de torrent. O VPN (em inglês, Virtual Private Network) cria uma conexão segura e criptografada, como um túnel, entre o seu computador e um servidor operado pelo serviço VPN

Uma explicação sobre o compartilhamento aberto está nesse outro documentário, “Good Copy Bad Copy”, que também exibimos no ciclo copy, right? em 2009.

https://www.youtube.com/watch?v=rJCBY_JerRk

Pois bem, voltando aos sites de torrent: é recomendável baixar uma extensão bloqueadora de anúncios no navegador para evitar de clicar em um lugar errado dentro do site. Também é sempre bom passar o mouse por cima dos links e observar no navegador pra qual lugar eles direcionam antes de clicar.

O link correto pro arquivo magnético normalmente tem o desenho de um imã ou escrito “Download Magnet”, e quando se passa o mouse por cima do link vai aparece o endereço no canto inferior esquerdo do navegador como “magnet:[código aleatório]”

Como usar: Passo 4 – Achar o link magnético, abrir o arquivo no cliente de torrent e escolher onde salvar

Quando clicar no link, o navegador vai pedir para abrir no seu cliente de torrent. Aí é só aceitar e aguardar o seu cliente achar o arquivo na rede. Depois selecionar a pasta onde deseja baixar e clicar ok.

Depois de clicar no link, seu navegador pede pra abrir o tipo de arquivo com o programa de torrent do seu computador

Várias informações no cliente de torrent, mas destaco: qual arquivo virá dentro do torrent (só tem um, que é o episódio da série) e onde ele vai ser salvo.

É isso: você entrou no site, achou o arquivo desejado, clicou no link magnético, e escolheu o lugar pra salvar o arquivo. Agora deve-se aguardar o arquivo ser copiado pra máquina, conforme a velocidade de download que o cliente informa em tempo real.

Essa velocidade de download depende da quantidade de usuários online que estão te deixando copiar o arquivo naquele momento. E aí entra o conceito importante da utilização do torrent: seeds.

Como usar torrent corretamente (entendendo seeders e leechers)

Nesse ponto, consegui explicar como começar a copiar arquivos por torrent. O que foi explicado basta para o processo funcionar, mas para ele dar certo de verdade, é importante entender o próximo conceito.

Seeders e leechers (semeadores e sanguessugas) são como são referidos os usuários (peers) de torrent. Ao entrar no site de torrents e procurar o arquivo desejado, nota-se a quantidade de um e de outro que aquele arquivo possui.

SEEDERS são os usuários que possuem o arquivo completo e mantém o cliente de torrent aberto para que outros usuários possam copiá-lo.

LEECHERS, os sanguessugas, são os usuários que não tem o arquivo completo e não conseguem copiá-lo, e ao mesmo tempo também são aqueles usuários que não compartilham seus arquivos normalmente, seja porque diminuem a velocidade de upload ou porque não deixam o cliente de torrent aberto.

Ser um semeador ou sanguessuga depende de quanto tempo seu cliente de torrent fica aberto, e quantos arquivos você deixa outros usuários copiarem do seu computador. Ser um seeder faz com que você tenha prioridade nas filas de download, e ao baixar um arquivo ao mesmo tempo que diversas pessoas estão fazendo isso, você recebe o arquivo antes.

Ao deixar seu torrent aberto, você permite que outros usuários copiem arquivos do seu computador, e quando você precisar copiar, vai ter prioridade na fila.

Mas perceba que ter prioridade para baixar é apenas um bônus de ser um seeder. A verdade é que o torrent simplesmente não funcionaria se os usuários não deixassem o cliente de torrent aberto para outros poderem copiar.

Muitas vezes só encontramos aquele filme italiano dos anos 70 online porque algum usuário da Dinamarca deixou ele em seu cliente de torrent e manteve o programa aberto tempo o suficiente para que você possa copiar. E se você deixar aberto no seu computador também, já são dois usuários para que o terceiro possa copiar ainda mais rápido, e assim sucessivamente.

É por isso que baixamos arquivos quentes, como o episódio mais recente da série mais famosa, em até dois minutos. Muitas pessoas estão semeando esse arquivo ao mesmo tempo. Filmes e séries mais raros podem demorar mais, mas mesmo assim o torrent pode ser o único jeito de ter acesso aquela conteúdo que nos interessa. Eu mesmo só consegui terminar de assistir a série Friday Night Lights, uma série americana de 2004 que passava na televisão aberta, pela benevolência de algum usuário que até hoje mantém aquele arquivo semeado em seu computador.

Ou seja, para o sistema funcionar bem, é importante deixar o cliente de torrent aberto no computador. É claro que para não degradar a qualidade da sua navegação, é possível limitar a velocidade de upload, para digamos 100 kB/s. Dessa forma, você deixa a pessoa copiar o arquivo da sua máquina com no máximo essa velocidade, e a sua navegação não é prejudicada.

Retomar a independência online é importante

Usar serviços de streaming, como Netflix ou Spotify, se tornou um conforto incontornável. São milhares de músicas e filmes disponíveis para o usuário a um clique de distância. E muitas vezes não é preciso nem procurar: ele te sugere o que ver ou ouvir. E é no momento em que abdicamos de escolher ativamente o que queremos que perdemos a independência.

Mas apesar de oferecer milhares de filmes, é muito difícil sair da centena que o Netflix apresenta na primeira página. Alguns artigos na internet já surgiram distribuindo códigos para pesquisar mais profundamente nos anais do acervo, mas fazendo isso, perdemos toda a lógica de conforto que o serviço propõe (apesar de já ser melhor do que ficar olhando as mesmas séries banais recomendadas).

Mudando de mídia, imagine como era antigamente: ao adquirir um vinil, investíamos nosso dinheiro no valor que aquele álbum nos traria, e ele era nosso. O esforço se transformava em valor quando ouvíamos o disco, e podíamos escolher entre todos aqueles que estavam na nossa coleção, comprados por nós.

Agora, ao nos depararmos com a página inicial do Spotify, temos centenas de playlists indicando o que é mais ouvido, o que parece mais com nós, o que foi feito recentemente. Nosso gosto interessa levemente pra ele, o máximo suficiente para que paguemos pela sua atenção. Não é mais pela música que estamos pagando, e sim pelo serviço de nos dizer o que ouvir.

Mas como sabemos que o interesse de nos dizer o que ver ou ouvir é voltado pra nós?

Através do torrent, temos a liberdade de consumirmos o que quisermos, ao tempo que quisermos (sem a frustração do Netflix tirar a série que estávamos olhando) e podemos compartilhar o que quisermos, como retribuição.

Victor Wolffenbüttel

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