BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 14 Feb 2025 14:17:31 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 A crise é cognitiva – a guerra cultural e os fins da internet https://baixacultura.org/2025/02/14/a-crise-e-cognitiva-a-guerra-cultural-e-os-fins-da-internet/ https://baixacultura.org/2025/02/14/a-crise-e-cognitiva-a-guerra-cultural-e-os-fins-da-internet/#respond Fri, 14 Feb 2025 14:09:45 +0000 https://baixacultura.org/?p=15788 Semana passada participei novamente no Balanço & Fúria para falar sobre as transformações da internet, das raízes rebeldes à ascensão da plataforma aliada (e potencializadora) da extrema direita. Falamos um pouco sobre como essa mudança impactou a cognição, o trabalho e a cultura, levando a uma crise de consenso e à ascensão da desinformação, entre outras coisas. No final destacamos a necessidade urgente de repensar a forma como interagimos com a tecnologia e de buscar alternativas que promovam a descentralização, a transparência e o bem comum. A ascensão do DeepSeek, com seu modelo de código aberto, oferece uma faísca de esperança em meio a um cenário de crescente preocupação com o poder das Big Techs e o impacto da desinformação. 

“Quem teve acesso à internet do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 jamais imaginaria que ela se tornaria um dos principais instrumentos para a elaboração do fascismo de nosso tempo, um impulsionador da crise política e estética, seguido da crise cognitiva que determinaria uma nova subjetividade em seus usuários, assim como uma nova definição de capitalismo ultraprecarizado e ultraliberal, que confundiu ainda mais os limites do trabalho, das liberdades e da democracia liberal.

Da guerra cultural à plataformização, passando pela monopolização das Big Techs e a disputa geopolítica baseada nas tecnologias criadas a partir do que resta da internet, Leonardo Foletto caminha sobre uma breve história das redes de compartilhamento, da pirataria, do hackativismo até o apodrecimento algorítmico fascista em que nos encontramos agora.”

Dá pra ouvir/baixar no site e também aqui abaixo.

[Leonardo Foletto]

 

 

 

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Software livre pode derrotar as big techs? https://baixacultura.org/2025/02/07/codigo-aberto-pode-derrotar-as-big-techs/ https://baixacultura.org/2025/02/07/codigo-aberto-pode-derrotar-as-big-techs/#respond Fri, 07 Feb 2025 17:09:28 +0000 https://baixacultura.org/?p=15779 Falei para o programa “Outra Manhã”, do Outras Palavras, na segunda 3/2/25 sobre DeepSeek e a questão do open source, a partir do texto publicado aqui – que foi republicado pelo OP também

Na conversa, de cerca de 1h, busquei enfatizar o potencial dos modelos de código aberto para desafiar o domínio de grandes empresas de tecnologia. Trouxe também questões éticas e práticas sobre o uso de dados, as implicações políticas da IA ​​e possibilidades futuras de desenvolvimento de IAs descentralizadas, locais e de código aberto. A manchete é um pouco sensacionalista, como o jornalismo tem costumado ser (às vezes por questão de sobrevivência).

[Leonardo Foletto]

Na semana seguinte, Antônio Martins e Glauco Faria conversaram com Uirã Porã sobre como o software livre vive no Brasil e como ele pode ser base da autonomia tecnológica, numa conversa que vale a pena escutar:

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A corrida da IA ganha um novo capítulo – chinês e open source https://baixacultura.org/2025/01/29/a-corrida-da-ia-ganha-um-novo-capitulo-chines-e-open-source/ https://baixacultura.org/2025/01/29/a-corrida-da-ia-ganha-um-novo-capitulo-chines-e-open-source/#comments Thu, 30 Jan 2025 01:31:18 +0000 https://baixacultura.org/?p=15766  

Segunda-feira, 27 de janeiro, Wall Street atravessou um de seus dias mais turbulentos. As previsões para o setor de inteligência artificial desmoronaram, “players” viram seus papéis derreterem. As ações da Nvidia, inflacionada pela corrida por chips instalados nas IAs generativas, tombaram 17%, resultando em uma perda de US$ 589 bilhões em valor de mercado – a maior queda diária já registrada na história do mercado financeiro americano, que virou matéria e foco de atenção de diversos jornais. Sete bigtechs (Apple, Amazon, Alphabet, Meta, Microsoft, Nvidia e Tesla) viram uma perda de US$ 643 bilhões em suas ações. O responsável por essa reviravolta? Um chatbot de baixo custo lançado por uma startup chinesa, a DeepSeek, criado em 2024 como um braço de pesquisa de um fundo chamado High Flyer, também chinês. Segundo a empresa, o custo de treinamento do modelo por trás da IA, o DeepSeek-R1, foi de aproximadamente US$ 6 milhões – um décimo do que a Meta investiu no desenvolvimento do Llama 3.1, por exemplo, ou menos ainda dos US$ 100 milhões que a OpenIA investiu no seu último modelo. Além disso, a startup informou que seu chatbot apresentou um desempenho superior ao GPT-4, da OpenAI, em 20 das 22 métricas analisadas.

Não entrando nos pormenores econômicos especulativos do mercado de ações (o tombo se deu no valor do mercado destas big techs a partir da desvalorização de suas ações), o fato principal aqui é: a queda foi sobretudo porque a DeepSeek mostrou ao mundo que existe possibilidade de se competir na área com menos dinheiro, investido de forma eficiente. Com menos processadores, chips e data centers, a empresa destravou a possibilidade de operar com custos menores, justo semanas depois de Trump, ao lado de Sam Altman (Open IA) e Larry Ellison (Oracle), anunciar o “Stargate”, um mega programa de investimentos em IA no Texas com potencial anunciado de alavancar até US$ 500 bilhões de dólares em cinco anos. O lançamento do modelo da DeepSeek redesenha a disputa entre EUA e China pela inteligência artificial e mostra que, mesmo com as travas colocadas pelo Governo Biden na compra de chips da Nvidia pela China, ainda assim é possível fazer sistemas robustos de IA de forma mais barata do que Altman e cia afirmam.

As diferenças técnicas do sistema chinês

Vamos tentar explicar aqui brevemente como funciona o DeepSeek e as principais diferenças em relação ao seus modelos concorrentes. O recém-lançado R1 é um modelo de linguagem em grande escala (LLM) que conta com mais de 670 bilhões de parâmetros, projetado a partir de 2.048 chips H800 da Nvidia – estima-se, por exemplo, que os modelos desenvolvidos pelas big techs utilizem cerca de 16 mil chips para treinar os robôs. Utiliza-se de aprendizado por reforço, uma técnica de aprendizado de máquina (machine learning) em que o sistema aprende automaticamente com os dados e a própria experiência, sem depender de supervisão humana,  a partir de mecanismos de recompensa/punição.

Para aumentar sua eficiência, a DeepSeek adotou a arquitetura Mixture-of-Experts (MoE), uma abordagem dentro do aprendizado de máquina que, em vez de utilizar todos os parâmetros do modelo (ou toda as redes neurais) em cada tarefa, ativa só os necessários de acordo com a demanda. Isso torna o R1 mais ágil e reduz o consumo de energia computacional, executando as operações de forma mais leve e rápida. É como se o modelo fosse uma grande equipe de especialistas e, ao invés de todos trabalharem sem parar, apenas os mais relevantes para o trabalho em questão são chamados, economizando tempo e energia.

Outra técnica utilizada pelo R1 é a Multi-Head Latent Attention (MLA), que permite ao modelo identificar padrões complexos em grandes volumes de dados, usando de 5 a 13% da capacidade de modelos semelhantes como a MHA (Multi-Head Attention), o que a torna mais eficiente, segundo essa análise bem técnica publicada por Zain ul Abideen, especialista em LLM e aprendizado de máquina, em dezembro 2024. Grosso modo, a MLA analisa de forma simultânea diferentes partes dos dados, a partir de várias “perspectivas”, o que possibilita ao DeepSeek-R1 processar informações de maneira mais precisa gastando menos recursos de processamento. A MLA funciona como um grupo de pessoas olhando para o mesmo problema de diferentes ângulos, sempre buscando a melhor solução — de novo e de novo e de novo, a cada novo desafio.

Além de seu baixo custo de treinamento, um dos maiores atrativos do modelo está no baixo custo da operação geral. Grandes empresas de tecnologia costumam cobrar valores altos para acessar suas APIs, ferramentas que permitem que outras empresas usem seus modelos de inteligência artificial em seus próprios aplicativos. A DeepSeek, por outro lado, adota uma abordagem mais acessível; a API do R1 custa entre 20 e 50 vezes menos do que a da OpenAI, de acordo com a empresa. O preço de uma API é calculado com base na quantidade de dados processados pelo modelo, medido em “tokens”. No caso da DeepSeek, a API cobra US$ 0,88 por milhão de tokens de entrada e US$ 3,49 por milhão de tokens de saída. Em comparação, a OpenAI cobra US$ 23,92 e US$ 95,70, respectivamente. Ou seja, empresas que optarem pela tecnologia da chinesa podem economizar substancialmente ao integrar o modelo R1 em suas plataformas.

A DeepSeek declarou que usou 5,5 milhões de dólares (32 milhões de reais) em capacidade computacional, utilizando apenas as 2.048 GPUs Nvidia H800 que a empresa chinesa tinha, porque não podia comprar as GPUs H100 ou A100, superiores, que as big techs acumulam às centenas de milhares. Para ter uma ideia: Elon Musk tem 100 mil GPUs, a OpenAI treinou seu modelo GPT-4 em aproximadamente 25 mil GPUs A100.

Em entrevista à TV estatal chinesa, Liang Wenfeng, CEO da DeepSeek e também do fundo que bancou o modelo (High Flyer), disse que a empresa nunca pretendeu ser disruptiva, e que o “estrelato” teria vindo por “acidente”. “Não esperávamos que o preço fosse uma questão tão sensível. Estávamos simplesmente seguindo nosso próprio ritmo, calculando custos e definindo preços de acordo. Nosso princípio não é vender com prejuízo nem buscar lucros excessivos. O preço atual permite uma margem de lucro modesta acima de nossos custos”, afirmou o fundador da DeepSeek.

“Capturar usuários não era nosso objetivo principal. Reduzimos os preços porque, primeiro, ao explorar estruturas de modelos de próxima geração, nossos custos diminuíram; segundo, acreditamos que os serviços de IA e API devem ser acessíveis e baratos para todos.”

Wenfeng é bacharel e mestre em engenharia eletrônica e da informação pela Universidade de Zhejiang. Entre muitas especulações momentâneas sobre sua vida pessoal, o que se sabe é que o empresário de 40 anos parece “mais um nerd do que um chefe” e que é um entusiasta do modelo open source de desenvolvimento, o que nos leva para o próximo tópico.

As vantagens do código aberto 

Um componente fundamental do sucesso (atual) do modelo chinês é o fato de estar em código aberto. O DeepSeek-V3, lançado no final de 2024, está disponível no GitHub, com uma documentação detalhada sobre como foi feito e como pode ser replicado.

Isso, na prática, tem fomentado uma corrida de várias pessoas e grupos para experimentar fazer seus próprios modelos a partir das instruções dadas pela equipe do DeepSeek. Dê uma busca no Reddit e nos próprios buscadores nestes últimos dias de janeiro de 2025 e você já verá uma enxurrada de gente fazendo.

Como vocês já ouviram falar no “A Cultura é Livre”, a natureza do código aberto, de origem filosófica no liberalismo clássico do século XVII e XVIII, permite mais colaborações, e acaba por impulsionar tanto a concorrência de outras empresas no setor quanto diferentes forks independentes e autônomos individuais. Vale, porém, aqui dizer que o código aberto não é o mesmo que um software livre. Software de código aberto (free/libre/open source software, acrônimo Floss adotado pela primeira vez em 2001) é um nome usado para um tipo de software que surgiu a partir da chamada Open Source Initiative (OSI), estabelecida em 1998 como uma dissidência com alguns princípios mais pragmáticos que os do software livre. A flexibilização na filosofia de respeito à liberdade dos usuários (mais rígida e comprometida com a justiça social no software livre, mais pragmática e aplicável como metodologia de desenvolvimento no open source) propiciou uma expansão considerável tanto do software de código aberto quanto de projetos e empresas que têm este tipo de software como produto e motor de seus negócios. A OSI tem como texto filosófico central “A catedral e o bazar”, de Eric Raymond, publicado em 1999. Nele, Raymond trabalha com a ideia de que “havendo olhos suficientes, todos os erros são óbvios”, para dizer que, se o código fonte está disponível para teste, escrutínio e experimentação pública, os erros serão descobertos mais rapidamente.

A definição da OSI diz que um sistema open source é:

The program must include source code, and must allow distribution in source code as well as compiled form. Where some form of a product is not distributed with source code, there must be a well-publicized means of obtaining the source code for no more than a reasonable reproduction cost, preferably downloading via the Internet without charge. The source code must be the preferred form in which a programmer would modify the program. Deliberately obfuscated source code is not allowed. Intermediate forms such as the output of a preprocessor or translator are not allowed.

O esclarecimento sobre o que é código aberto é importante porque, na esteira do desenvolvimento das IAs de código aberto, vem também surgindo um movimento de open washing, ou seja: a prática de empresas privadas dizerem que os códigos de seus sistemas algorítmicos são abertos – quando na verdade não são tão abertos assim. Ou então quando grandes corporações (ou startups) iniciam projetos em código aberto para incorporar o trabalho colaborativo de colaboradores (desenvolvedores, tradutores, cientistas de dados) – para logo depois, quando o projeto se torna mais robusto, fecharem o código e nunca mais abrirem. “O Google tem um histórico nessa prática, a própria OPEN IA fez isso – e foi processada por Elon Musk (!) justamente por não seguir os princípios abertos.

Escrevemos em nossa última newsletter do BaixaCultura que a Meta, ao dizer que seu modelo LLama é aberto, vem “poluindo” e “confundindo” o open source, como afirma Stefano Maffulli, diretor da Open Source Initiative (OSI). Mas o que o Llama traz como aberto, porém, são os pesos que influenciam a forma como o modelo responde a determinadas solicitações. Um elemento importante para a transparência, mas que por si só não faz se encaixar na definição do open source. A licença sob a qual o Llama foi lançado não permite o uso gratuito da tecnologia por outras empresas, por exemplo, o que não está em conformidade com as definições de código aberto reconhecidas pela OSI. “Programadores que utilizam modelos como o Llama não têm conseguido ver como estes sistemas foram desenvolvidos, ou construir sobre eles para criar novos produtos próprios, como aconteceu com o software de código aberto”, acrescenta Maffuli.

Mas existem IAs totalmente abertas?

A disputa (velha, aliás) pelo que de fato é open source – e principalmente o que não é – também ganha um novo capítulo com o DeepSeek. A “OSI AI Definition – 1.0-RC1” aponta que uma IA de código aberto deve oferecer quatro liberdades aos seus utilizadores:

_ Utilizar o sistema para qualquer fim e sem ter de pedir autorização;

_ Estudar o funcionamento do sistema e inspecionar os seus componentes;

_ Modificar o sistema para qualquer fim, incluindo para alterar os seus resultados;

_ Partilhar o sistema para que outros o utilizem, com ou sem modificações, para qualquer fim;

Nos quatro pontos o DeepSeek v-1 se encaixa. Tanto é que, como mencionamos antes, já tem muita gente fazendo os seus; seja criando modelos ainda mais abertos quanto para ser executada localmente em um dispositivo separado, com boas possibilidades de customização e com exigência técnica possível na maior parte dos computadores bons de hoje em dia. Para não falar em modelos parecidos que já estão surgindo na China, como o Kimi k1.5, lançado enquanto esse texto estava sendo escrito – o que motivou memes de que a competição real na geopolítica de IA está sendo feita entre regiões da China, e não entre EUA X China.

O fato de ser de código aberto faz com que o DeepSeek, diferente do ChatGPT ou do LLama, possa ser acoplado e inserido com diferentes funcionalidades por outras empresas, grupos, pessoas com mais facilidade e menor custo. Ao permitir que novas soluções surjam, torna a barreira de entrada da inteligência artificial muito menor e estoura a bolha especulativa dos financistas globais sobre o futuro da tecnologia – o que talvez seja a melhor notícia da semana.

Mas há um porém importante nessa discussão do código aberto: as bases de dados usadas para treinamento dos sistemas. Para treinar um modelo de IA generativa, parte fundamental do processo são os dados utilizados e como eles são utilizados. Como analisa o filósofo e programador Tante nesse ótimo texto, os sistemas de IA generativa (os LLMs) são especiais porque não consistem em muito código em comparação com o seu tamanho. Uma implementação de uma rede neural é constituída por algumas centenas de linhas de Python, por exemplo, mas um LLM moderno é composto por algum código e uma arquitetura de rede – que depois vai ser parametrizada com os chamados “pesos”, que são os milhares de milhões de números necessários para que o sistema faça o que quer que seja, a partir dos dados de entrada. Assim como os dados, estes “pesos” também precisam ser deixados claros quando se fala em open source, afirma Tante.

Não está claro, ainda, quais foram os dados de treinamento do DeepSeek e como estes pesos foram distribuídos. Endossando Tante, Timnit Gibru disse neste post que para ser open source de fato teria que mostrar quais os dados usados e como foram treinados e avaliados. O que talvez nunca ocorra de fato, pois isso significa assumir que a DeepSeek pegou dados de forma ilegal na internet tal qual o Gemini, a LLama e a OpenIA – que está acusando a DeepSeek de fazer o mesmo que ela fez (!). Outras IAs de código aberto também não deixam muito claro como funcionam suas bases, embora as proprietárias muito menos. Ainda assim, são os modelos de IA identificados como open source, com seus códigos disponíveis no Github, os que lideram o nível de transparência, segundo este índice criado por pesquisadores da Universidade de Stanford, que identificou como os mais transparentes o StarCoder e o Jurassic 2.

Podemos concluir que na escala em que estamos falando desses sistemas estatísticos atualmente, e entendendo o acesso e o tratamento dos dados como elementos constituintes do códigos a ser aberto, uma IA totalmente open source pode ser quase uma utopia. Muitos modelos menores foram e estão sendo treinados com base em conjuntos de dados públicos explicitamente selecionados e com curadoria. Estes podem fornecer todos os processos, os pesos e dados, e assim serem considerados, de fato, como IA de código aberto. Os grandes modelos de linguagem que passamos a chamar de IA generativa, porém, baseiam-se todos em material adquirido e utilizado ilegalmente também porque os conjuntos de dados são demasiado grandes para fazer uma filtragem efetiva de copyright e garantir a sua legalidade – e, talvez, mesmo a sua origem definitiva, dado que muitas vezes podemos ter acesso ao conjunto de uma determinada base de dados, mas não exatamente que tipo de dado desta base foi utilizada para treinamento. Aliás, não é surpresa que hoje muitos dos que estão procurando saber exatamente o dado utilizado são detentores de copyright em busca de processar a Open AI por roubo de conteúdo.

Mesmo que siga o desafio de sabermos como vamos lidar com o treinamento e a rastreabilidade dos dados usados pelos modelos de IA, a chegada do DeepSeek como um modelo de código aberto (ou quase) tem enorme importância sobretudo na ampliação das possibilidades de concorrência frente aos sistemas da big techs. Não é como se o império das grandes empresas de tecnologia dos Estados Unidos tivesse ruído da noite pro dia, mas houve uma grande demonstração de como a financeirização da economia global amarrou uma parte gigantesca do valor financeiro do mundo às promessas de engenheiros que claramente estavam equivocados nas suas projeções do que era preciso para viabilizar a inteligência artificial – seja para ganhos especulativos ou por puro desconhecimento.

A parte ainda não solucionada da equação é uma repetição do antigo episódio envolvendo o lançamento do Linux: se essa solução estará disponível para ser destrinchada por qualquer um, como isso vai gerar mais independência aos cidadãos? A inteligência artificial tem milhares de aplicações imaginadas, e até agora se pensava em utilizá-la nos processos produtivos de diversas indústrias e serviços pelo mundo. Mas como ela pode sugerir independência e autonomia para comunidades, por exemplo? Espera-se, talvez de maneira inocente, que suas soluções sejam aproveitadas pela sociedade como um todo, e que não sejam meramente cooptadas pelo mercado para usos privados como tem ocorrido até aqui. Por fim, o que se apresenta é mais um marco na história da tecnologia, onde ela pode dobrar a curva da independência, ou seguir no caminho da instrumentalização subserviente às taxas de lucro.

[Leonardo Foletto e Victor Wolffenbüttel]

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IA e os direitos dos escritores https://baixacultura.org/2024/11/01/ia-e-os-direitos-dos-escritores/ https://baixacultura.org/2024/11/01/ia-e-os-direitos-dos-escritores/#respond Fri, 01 Nov 2024 12:40:35 +0000 https://baixacultura.org/?p=15749 Traduzimos um artigo do escritor e ativista Cory Doctorow que explora como a Penguin Random House (PRH), maior grupo editorial do mundo, tem restringido o uso de seus livros para treinamento de IA, o que tem gerado uma sensação de proteção entre escritores. No entanto, convém ter calma: esse tipo de movimento pode ser mais sobre controle econômico do que defesa dos direitos dos trabalhadores criativos. “Só porque você está do lado deles, não significa que eles estejam do seu lado”.

Doctorow destaca que muitas editoras e grandes players da mídia usam táticas como essa para maximizar lucros, enquanto os trabalhadores criativos raramente se beneficiam diretamente dessas mudanças. Mesmo com a nova política da PRH – que provavelmente servirá de base para outras editoras mundo afora – é improvável que os escritores recebam qualquer compensação adicional se a PRH cobrar pelo uso das obras em treinamentos de IA.

Doctorow aponta também que a concentração do mercado editorial reduz as chances de negociação para autores. Hoje, com apenas cinco grandes editoras dominando o setor, os escritores perdem força de negociação e encontram dificuldades para exigir melhores condições, algo que era mais viável em um mercado menos concentrado.

O ensaio também sugere que em vez de focar exclusivamente em garantir mais direitos autorais, escritores e outros trabalhadores criativos poderiam se mobilizar para conquistar maior autonomia financeira e melhores condições em negociações com as editoras. Movimentos como, por exemplo, o direito de reaver suas obras após alguns anos – 14 anos, como era no sistema original de copyright dos EUA, e não 35 ou após a morte do autor – e revendê-las por mais dinheiro, poderiam dar mais controle aos autores sobre suas criações, garantindo uma renda justa e estável.

 

Penguin, Inteligência Artificial e os direitos dos escritores

Cory Doctorow

Publicado originalmente no Pluralistic em 19/10/24
Tradução: Leonardo Foletto

Minha amiga Teresa Nielsen Hayden é uma fonte de ditados sábios, como “você não é responsável pelo que faz nos sonhos de outras pessoas” e o meu favorito de todos os tempos, da época do Napster: “Só porque você está do lado deles, não significa que eles estejam do seu lado”.

As gravadoras odiavam o Napster, assim como muitos músicos, e quando esses músicos ficaram do lado de suas gravadoras nas campanhas legais e de relações públicas contra o compartilhamento de arquivos, eles deram legitimidade legal e pública à causa das gravadoras, que acabou prevalecendo.

Mas as gravadoras não estavam do lado dos músicos. O fim do Napster e, com ele, a ideia de um sistema de licença geral para distribuição de música pela Internet (semelhante aos sistemas de rádio, apresentações ao vivo e música enlatada) em locais e lojas) estabeleceu firmemente que os novos serviços *devem* obter permissão das gravadoras para operar.

A era atual é muito boa para as gravadoras. O cartel das “Big Three”- Universal, Warner e Sony – ditou os termos com o Spotify, que em contrapartida entregou bilhões de dólares em ações e permitiu que as três grandes co-projetassem o esquema de royalties sob o qual o Spotify opera hoje.

Se você ouviu alguma coisa sobre os pagamentos do Spotify, provavelmente sabe que eles são extremamente desfavoráveis aos artistas. Isso é verdade, mas não significa que seja desfavorável para as três grandes gravadoras. As “Big Three” têm seus pagamentos mensais assegurados, grande parte registrada como “royalties não atribuíveis” –  dinheiro que as gravadoras podem distribuir entre os artistas ou usarem como bem entenderem. Também tem outras vantagens, como por exemplo poder incluir gratuitamente músicas de seus artistas nas principais listas de reprodução. Além disso, os pagamentos ultra baixos aos artistas aumentam o valor das ações das gravadoras no Spotify, pois quanto menos o Spotify tiver que pagar pela música, melhor será sua imagem para os investidores. Assim, as Big Three – que detêm 70% de todas as músicas já gravadas no mundo, graças a uma orgia de fusões – compensam o déficit dessas baixas taxas por fluxo com pagamentos garantidos e promoções.

Mas as gravadoras independentes e os músicos, que representam os 30% restantes, ficam de fora dessa conta. Eles estão presos ao mesmo esquema de royalties fracionários de centavo por streaming que as  Big Three, mas não recebem garantias gigantescas de dinheiro mensal, além de precisarem pagar pela colocação de músicas em playlists – o que as Big Three fazem de graça.

Só porque você está do lado deles, não significa que eles estejam do seu lado. [Leia o que escrevi sobre como o Spotify rouba dos artistas

 

Em um sentido muito concreto e importante, os trabalhadores criativos – escritores, cineastas, fotógrafos, ilustradores, pintores e músicos – não estão do mesmo lado que as gravadoras, agências, estúdios e editoras que colocam nosso trabalho no mercado. Essas empresas não são instituições de caridade; elas são motivadas a maximizar os lucros e uma maneira importante de fazer isso é reduzir os custos, inclusive e principalmente o custo de nos pagar pelo nosso trabalho.

É fácil não perceber esse fato porque os trabalhadores dessas gigantescas empresas de entretenimento são nossos aliados de classe. O mesmo impulso que restringe os pagamentos aos escritores é usado quando as empresas de entretenimento pensam em quanto pagam aos editores, assistentes, publicitários e à equipe da logística. Essas são as pessoas com as quais os trabalhadores criativos lidam no dia a dia; elas, em geral, estão sim do nosso lado, e é fácil confundir essas pessoas com seus empregadores.

Essa guerra de classes não precisa ser o fato central do relacionamento dos trabalhadores criativos com nossas editoras, gravadoras, estúdios, etc. Quando há muitas dessas empresas de entretenimento, elas competem umas com as outras pelo nosso trabalho (e pelo trabalho dos funcionários que levam esse trabalho ao mercado), o que aumenta nossa participação no lucro que nosso trabalho produz.

Mas vivemos em uma era de extrema concentração de mercado em todos os setores, inclusive no de entretenimento, onde lidamos com cinco editoras, quatro estúdios, três gravadoras, duas empresas de tecnologia de publicidade e uma única empresa que controla todos os e-books e audiolivros na América do Norte. Essa concentração faz com que seja muito mais difícil para os artistas negociarem de forma eficaz com as empresas de entretenimento, o que significa que é possível – e até provável – que as empresas de entretenimento obtenham vantagens de mercado que não são compartilhadas com os trabalhadores criativos. Em outras palavras: quando seu campo é dominado por um cartel, você pode estar do lado deles, mas é quase certo que eles não estão do seu lado.

Esta semana, a Penguin Random House (PRH), a maior editora “da história da raça humana”, ganhou as manchetes quando alterou o aviso de copyrights de seus livros para proibir o treinamento de IA.

A página de copyright agora inclui esta frase:

Nenhuma parte deste livro pode ser usada ou reproduzida de qualquer maneira para fins de treinamento de tecnologias ou sistemas de inteligência artificial.

Muitos escritores estão comemorando essa mudança como uma vitória dos direitos dos trabalhadores criativos sobre as empresas de IA, que arrecadaram centenas de bilhões de dólares, em parte prometendo aos nossos chefes que podem nos demitir e nos substituir por algoritmos.

Mas esses escritores estão presumindo que, só porque estão do lado da Penguin Random House, a PRH está do lado deles. Eles estão presumindo que, se a PRH lutar contra as empresas de IA que treinam bots com seu trabalho gratuitamente, isso significa que a PRH não permitirá que bots sejam treinados com seu trabalho de forma alguma.

Essa é uma visão bastante ingênua. O que é muito mais provável é que a PRH use todos os direitos legais que possui para insistir que as empresas de IA paguem pelo direito de treinar chatbots com os livros que escrevemos. É muito improvável que a PRH compartilhe o dinheiro da licença com os escritores cujos livros são então jogados no funil de treinamento do bot. Também é extremamente provável que a PRH tente usar a produção dos chatbots para reduzir nossos salários ou nos demitir e substituir nosso trabalho por uma IA lixo.

Isso é especulação de minha parte, mas é uma especulação informada. Observe que a PRH não anunciou que permitiria aos autores reivindicar o direito contratual de impedir que seu trabalho fosse usado para treinar um chatbot. Ou que estava oferecendo aos autores uma parte de qualquer uma das taxas de licença de treinamento, ou uma parte da renda de qualquer coisa produzida por bots treinados com o nosso trabalho.

De fato, à medida que o mercado editorial se transformou das trinta e poucas editoras de médio porte que floresciam quando eu era um escritor novato para as Cinco Grandes que dominam o campo atualmente, seus contratos ficaram notavelmente e materialmente piores para os escritores.

Isso não tem nada de surpreendente. Em qualquer leilão, quanto mais licitantes sérios houver, mais alto será o preço final. Quando havia trinta possíveis licitantes para nosso trabalho, conseguíamos em média um acordo melhor do que agora, quando há no máximo cinco licitantes.

Embora isso seja evidente, a Penguin Random House insiste em dizer que não é verdade. Na época em que a PRH estava tentando comprar a Simon & Schuster (reduzindo assim as cinco grandes editoras para quatro), eles insistiram que continuariam a fazer lances contra eles mesmos: editores da Simon & Schuster (que seria uma divisão da PRH) fariam lances contra editores da Penguin (outra divisão da PRH) e da Random House (mais uma divisão da PRH).

Isso é um absurdo óbvio, como disse [o escritor] Stephen King quando testemunhou contra a fusão (que foi posteriormente bloqueada pelo tribunal): “Você poderia muito bem dizer que terá marido e mulher concorrendo um contra o outro pela mesma casa. Seria muito cavalheiresco e tipo, ‘Depois de você’ e ‘Depois de você’, disse ele, gesticulando com um movimento educado do braço”.

A Penguin Random House não se tornou a maior editora da história publicando livros melhores ou fazendo um marketing melhor. Eles atingiram sua escala comprando seus rivais. A empresa é, na verdade, uma espécie de organismo colônia formado por dezenas de editoras que antes eram independentes. Cada uma dessas aquisições reduziu o poder de barganha dos escritores, mesmo dos escritores que não escrevem para a PRH, porque o desaparecimento de um licitante confiável para o nosso trabalho no portfólio corporativo da PRH reduz os possíveis licitantes para o nosso trabalho, independentemente de para quem o estamos vendendo.

Prevejo que a PRH não permitirá que seus escritores incluam uma cláusula em seus contratos proibindo a PRH de usar seu trabalho para treinar uma IA. Essa previsão se baseia em minha experiência direta com duas das outras cinco grandes editoras, onde sei com certeza que elas se recusaram terminantemente a fazer isso e disseram ao escritor que qualquer insistência em incluir esse contrato levaria à rescisão da oferta.

As Big Five têm termos de contrato marcadamente semelhantes. Ou melhor, contratos incrivelmente semelhantes, uma vez que os setores concentrados tendem a convergir em seu comportamento operacional. As Big Five são semelhantes o suficiente para que se entenda que um escritor que processe uma delas provavelmente será excluído das demais.

Meu próprio agente me deu esse conselho quando uma das Big Fives me roubou mais de US$ 10.000 – cancelou um projeto do qual eu fazia parte porque outra pessoa envolvida com ele desistiu e, em seguida, retirou cinco dígitos da taxa de inscrição especificada em meu contrato, só porque podia. Meu agente me disse que, embora eu certamente ganhasse o processo, isso custaria a minha carreira, pois me colocaria em má situação com todos as Big Five.

Os escritores que estão aplaudindo o novo aviso de direitos autorais da Penguin Random House estão operando sob a crença equivocada de que isso tornará menos provável que nossos chefes comprem uma IA na esperança de nos substituir por ela. Isso não é verdade. Conceder à Penguin Random House o direito de exigir taxas de licença para treinamento em IA não fará nada para reduzir a probabilidade de que a Penguin Random House opte por comprar uma IA na esperança de reduzir nossos salários ou nos demitir.

Mas outra coisa fará! O Escritório de Direitos Autorais dos EUA emitiu uma série de decisões, confirmadas pelos tribunais, afirmando que nada feito por uma IA pode ser protegido por direitos autorais. Por estatuto e tratado internacional, o direito autoral é um direito reservado para obras de criatividade humana (é por isso que a “selfie do macaco” não pode ser protegida por direitos autorais).

Cryteria/CC BY 3.0, modificado

Se todas as outras coisas forem iguais, as empresas de entretenimento vão preferir pagar aos trabalhadores criativos o mínimo possível (ou nada) pelo nosso trabalho. Mas, por mais forte que seja sua preferência por reduzir os pagamentos aos artistas, elas estão muito mais comprometidas em poder controlar quem pode copiar, vender e distribuir os trabalhos que lançam.

Em outras palavras, quando confrontadas com a escolha entre “Não precisamos mais pagar aos artistas” e “Qualquer pessoa pode vender ou distribuir nossos produtos e não receberemos um centavo por isso”, as empresas de entretenimento pagarão aos artistas todo o dia.

Lembra-se daquele idiota de quem todos riram porque ele conseguiu ganhar um concurso de arte com uma porcaria de IA e depois ficou com raiva porque as pessoas estavam copiando a “sua” imagem? A insistência desse cara de que sua porcaria deveria ter direito a direitos autorais é muito mais perigosa do que o golpe original de fingir que ele pintou a porcaria em primeiro lugar.

Se a PRH estivesse intervindo nesses casos de direitos autorais de IA do Copyright Office para dizer que os trabalhos de IA não podem ser protegidos por direitos autorais, isso seria um caso em que estaríamos do lado deles – e eles estariam do nosso lado. No dia em que eles apresentarem uma petição de amicus curiae ou um comentário de regulamentação apoiando a ausência de direitos autorais para IA, eu os louvarei aos céus.

Mas essa alteração no aviso de direitos autorais do PRH não vai melhorar o saldo bancário dos escritores. Dar aos escritores a capacidade de controlar o treinamento de IA não impedirá a PRH e outras empresas gigantes de entretenimento de treinar IAs com nosso trabalho. Elas simplesmente dirão: “Se você não assinar o direito de treinar uma IA com seu trabalho, não o publicaremos”.

O maior indicador de quanto dinheiro um artista ganha com a exploração de seu trabalho não é a quantidade de direitos exclusivos que temos, mas sim o poder de negociação que temos. Quando você negocia com cinco editoras, quatro estúdios ou três gravadoras, todos os novos direitos que você obtém do Congresso ou dos tribunais são simplesmente transferidos para eles na próxima vez que você negociar um contrato.

Como Rebecca Giblin e eu escrevemos em nosso livro de 2022 “Chokepoint Capitalism”:

Dar mais direitos autorais a um trabalhador criativo é como dar mais dinheiro para o lanche de um aluno que sofre bullying. Não importa o quanto você dê a ele, os valentões ficarão com tudo. Dê a seu filho dinheiro suficiente para o lanche e os valentões poderão subornar o diretor da escola para que faça vista grossa. Continue dando dinheiro para o lanche da criança e os agressores poderão lançar um apelo global exigindo mais dinheiro para o lanche de crianças famintas!

Como a sorte dos trabalhadores criativos diminuiu durante a era neoliberal de fusões e consolidações, nós nos distraímos com campanhas para obter mais direitos autorais, em vez de mais poder de negociação.

Existem políticas de direitos autorais que nos dão mais poder de negociaçao. Proibir que trabalhos de IA obtenham direitos autorais nos dá mais poder de negociação. Afinal, só porque a IA não pode fazer nosso trabalho, não significa que os vendedores de IA não possam convencer nossos chefes a nos demitir e nos substituir por uma IA incompetente.

Depois, há a “rescisão de direitos autorais”. De acordo com o Copyright Act de 1976, nos Estados Unidos os trabalhadores criativos podem reaver os direitos autorais de suas obras após 35 anos, mesmo que assinem um contrato abrindo mão dos direitos autorais por toda a sua duração.

Trabalhadores criativos, de George Clinton a Stephen King e Stan Lee, converteram esse direito em dinheiro – ao contrário, por exemplo, de termos mais longos de direitos autorais, que são simplesmente transferidos para empresas de entretenimento por meio de cláusulas contratuais não negociáveis. Em vez de nos juntarmos aos nossos editores na luta por termos mais longos de direitos autorais, poderíamos exigir termos mais curtos para a rescisão de direitos autorais. Por exemplo, o direito de retomar um livro, música, filme ou ilustração popular após 14 anos (como era o caso no sistema original de direitos autorais dos EUA) e revendê-lo por mais dinheiro como um sucesso comprovado e sem riscos.

Até lá, lembre-se: “só porque você está do lado deles, isso não significa que eles estejam do seu lado”. A PRH não quer evitar que o conteúdo de baixa qualidade feito por IA reduza os nossos salários como escritores; eles só querem ter certeza de que é a produção da IA deles que vai fazer isso, e não outra de fora.

 

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Cópia & Desvio – parte I https://baixacultura.org/2024/10/25/copia-desvio-parte-i/ https://baixacultura.org/2024/10/25/copia-desvio-parte-i/#respond Fri, 25 Oct 2024 18:52:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=15740  

A proliferação mundial dos sistemas de inteligências artificiais generativas quebrou um paradigma ao tornar a cópia ainda mais base para a criação. Tudo que está na internet e foi raspado – sem consentimento, aliás – por estes sistemas está sendo a base para a criação de inúmeras coisas, de cards de redes sociais a ilustrações de livros, passando por e-mails, artigos, filmes, textos e músicas. Se já no início do século XX a reprodução técnica, especialmente na fotografia e no cinema, tornava a cópia e o “original” não facilmente distinguíveis, o que dirá a partir de 2023, quando as IAs ampliam a reprodução digital e, cada vez mais, a separam de sua materialidade original, que passa a se transformar em mero dado, padrões de números a alimentarem grandes bancos onde não existe mais singularidade, apenas cópia.

Diante disso, qual é o papel da cópia na era da IA Generativa? O projeto Cópia & Desvio é uma série de conferências experimentais/performances sobre o direito para copiar e reutilizar o conhecimento humano. Organizado em atos, o objetivo é apresentar uma narrativa crítica sobre a cópia e sua relação com a política e a sociedade ao longo do tempo.

A primeira parte se chama “A cópia na era de sua proliferação técnica” e ocorreu ao vivo em 24 de outubro, às 19h (UTC-3). Nela, Rafael Bresciani e Leonardo Foletto remixaram artefatos sonoros e visuais em live-coding (no sistema Hydra, com a interface do Flok) para compor a narração da conferência, centrada nesta primeira parte nas práticas e reflexões de cópia no início do século XX. Teve participação nas vozes (e textos) de Walter Benjamin, Marcel Duchamp, Conde de Lautréamont e Tommaso Marinetti. Na música, Neu!, Talking Heads e Kaisoku Tokyo. Nas imagens, Pablo Picasso, Okumura Masanobu, Kunisada, J Borges, Louis Daguerre, Hugo Ball, Kurt Schwitters, Man Ray, Niepce, Abraham Salm, Marinetti, entre outros. As vozes de Duchamp, Benjamin e Lautréamont foram criadas a partir do treinamento do sistema de IA Generativa chamado Eleven Labs

O vídeo é parte de uma investigação que estamos fazendo desde 2023 sobre o papel da cópia ao longo dos últimos séculos na história da arte, o que passa pela questão histórica do desvio. Como se sabe, a arte é marcada pelo plágio, o roubo, o desvio, a cópia e apropriação. A segunda parte irá centrar na sgunda metade do século XX, período essencial da proliferação técnica das cópias a partir dos gravadores, samplers, fitas, fotocopiadoras, televisão, vídeos, computadores.

Assista abaixo. Após, um trecho do texto falado por Benjamin no vídeo:

 

“Tanto a poesia sonora, as colagens e o cinema são artes que foram potencializadas nessa primeira metade do século XX com a expansão da reprodução técnica. Os aparatos técnicos são protagonistas tanto como método de produção (caso das collages) quanto de gravação e apresentação ao público (poesia sonora e o cinema).

Eu não vou explicar hoje o que é Inteligência Artificial Generativa pois, como falei para vocês, ainda não sei bem. Intuo que elas ampliam a reprodução digital e, cada vez mais, a separam de sua materialidade original, que passa a se transformar em mero dado, padrões de números a alimentarem grandes bancos onde não existe mais singularidade.

Eu intuo também que as tecnologias digitais de reprodução tornam mais difícil a negação e a escolha. É como um loop da desintegração: o meio é abstraído na hiperconexão do e e e e e e e e e e e e e e, com menos possibilidade de ou ou ou ou. Às máquinas de reprodução técnica digital não é facultado a possibilidade de fim, mas sim a reprodução contínua e infinita de presente. Tudo passa a ser conectado ao propósito da reprodução contínua de cópias. Nada mais é criado, tudo passa a ser apenas repetição sem diferença. Todas as obras já existentes remixam as anteriores: tudo é cópia.” 

Walter Benjamin (Benja), remixado no vídeo

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A cópia na era de sua proliferação técnica https://baixacultura.org/2024/10/11/a-copia-na-era-de-sua-proliferacao-tecnica/ https://baixacultura.org/2024/10/11/a-copia-na-era-de-sua-proliferacao-tecnica/#respond Fri, 11 Oct 2024 20:16:34 +0000 https://baixacultura.org/?p=15723 Muito já se falou sobre as mudanças que a internet e as tecnologias digitais trouxeram para o compartilhamento de informação: a era da “liberação do polo emissor da informação” propiciou o acesso fácil a maior quantidade de informação disponível na história da humanidade, para o maior número de pessoas já existentes no planeta até aqui. 

É normal que o debate tenha o foco na recepção das informações digitalizadas. As práticas de consumo e circulação de informação dizem respeito a toda a sociedade, enquanto que as práticas criativas dizem respeito a um grupo mais seleto de pessoas que, de forma assumida, afirma que cria – embora saibamos que a criação está em muito mais lugares do que imaginamos. As mesmas tecnologias que nos levam a conversar sobre novos modos de consumir e compartilhar informação colocam, também, em relevo práticas criativas ligadas ao roubo. Identificamos um sampler em menos de 3 s, uma imagem através de uma busca simples de comparação num buscador da web; usamos qualquer obra para criar outras.

As práticas de (re) criação ligadas à abundância de informação potencializada nos últimos 30 anos por objetos técnicos não fazem outra coisa que não coletar, armazenar, processar e difundir dados. Estes objetos, que você reconhece em todos os hábitos cotidianos de uma pessoa do século XXI, tem por essência a cópia. Isso significa dizer que eles só existem porque copiam; não há ação no uso da internet e de objetos digitais que não seja, em essência, uma combinação gigantesca de números copiados. São os 0 e 1 recombinados a exaustão que fazem brotar, às vezes como mágica, imagens, sons, textos, que vão ser captados pelos nossos sentidos e fruídos como arte, jornalismo, entretenimento – ou simplesmente mentira.

A proliferação mundial dos sistemas de inteligências artificiais generativas (ChatGPT, MidJourney, Stable Diffusion, Gemini, etc) em 2023 quebra um paradigma ao tornar a cópia ainda mais base para a criação. Tudo que está na internet e foi raspado – sem consentimento, aliás – por estes sistemas está sendo a base para a criação de inúmeras coisas, de cards de redes sociais a ilustrações de livros, passando por e-mails, artigos, filmes, textos e músicas. Se já no início do século XX a reprodução técnica, especialmente na fotografia e no cinema, tornava a cópia e o “original” não facilmente distinguíveis, o que dirá a partir de 2023, quando as IAs ampliam a reprodução digital e, cada vez mais, a separam de sua materialidade original, que passa a se transformar em mero dado, padrões de números a alimentarem grandes bancos onde não existe mais singularidade, apenas cópia – a hiperconexão do E E E E E em vez do OU OU, já que às máquinas não é facultado a possibilidade de fim, mas sim a reprodução contínua e infinita de presente. 

Diante disso, qual será o papel da cópia na criação artística na era da Inteligência Artificial Generativa? Estamos em uma investigação, desde 2023, para entendermos o papel da cópia ao longo dos últimos séculos na história da arte, o que passa pela questão histórica do desvio: como se sabe – e nós já tratamos um pouco aqui, nos “momentos da história da recombinação” – a arte é marcada pelo plágio, o roubo, o desvio, a cópia e apropriação. Estamos nos encaminhando para o encerramento desse processo, que vai resultar num livro a ser publicado pela SobInfluencia em 2025.

Em paralelo e complementar ao processo de produção do livro, nasceu o projeto Cópia & Desvio. É uma série de conferências experimentais/performances/lives sobre o direito para copiar e reutilizar o conhecimento humano. Organizado em quatro atos, o objetivo é apresentar uma narrativa crítica sobre a cópia e sua relação com a política e a sociedade ao longo do tempo. Em diálogo com o processo de escrita do livro, as quatro sessões vão abordar temas, pessoas, grupos e movimentos históricos onde a cópia ganhou destaque, sempre em diálogo com a história das tecnologias que permitiram transformações na reprodução técnica. 

Vamos examinar momentos como a criação do rádio e da arte sonora do surrealismo e do dadaísmo; o détournement situacionista e o cut-up dos 1960; a arte xerox e a mail art dos anos 1970 e 1980; os samplers e a cultura hip-hop, os remixes e os memes potencializados na internet; até chegar, por fim, a criação na era da IAs generativas.

As conferências/performances se desenvolvem em um formato experimental, ao vivo, como lives, em que a narração irá acompanhar um live coding com elementos visuais e sonoros, além de outras intervenções ao vivo. Serão gravadas e transmitidas, via canal do Youtube do BaixaCultura.

A primeira destas conferências será chamada de “A cópia na era de sua proliferação técnica” e vai ocorrer no 24 de outubro, às 19h (Brasil, UTC-3). Rafael Bresciani e Leonardo Foletto vão criar artefatos sonoros e visuais para compor a narração da conferência, centrada nas práticas e reflexões de cópia no século XX, de Walter Benjamin a Lev Manovich, passando por Marcel Duchamp, Guy Debord, William Burroughs, Hugo Pontes, Paulo Bruczky, Moholy-Nagy, Rosalind Krauss, Yoko Ono, Andy Warhol, Sherrie Levine, Devo, Talking Heads, Neu!, entre outros.

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Ética da pirataria e o tráfico de cultura https://baixacultura.org/2024/09/06/etica-da-pirataria-e-trafico-de-cultura/ https://baixacultura.org/2024/09/06/etica-da-pirataria-e-trafico-de-cultura/#respond Fri, 06 Sep 2024 21:38:00 +0000 https://baixacultura.org/?p=15718 Como era a internet antes do Twitter? Ou melhor, como era a internet antes dos monopólios das redes sociais e das plataformas de streaming?

O que um dia pareceu oferecer um horizonte de descentralização na produção e distribuição de informação e arte definhou e se transformou em uma máquina de especulação, vigilância, roubo de dados e um terreno fértil para a extrema-direita.

Já sabemos que a internet como a conhecemos acabou, e torcemos para que o que ela se transformou também acabe – ou mude radicalmente. Mas, enquanto isso não acontece, conversei com Rodrigo Corrêa, do podcast Balanço e Fúria (e editor da SobInfluencia), sobre pirataria e a internet da subversão. Desvio, expropriação, cópia, roubo: são muitas as formas de qualificar a prática da pirataria, que desde muito tempo desempenha uma função fundamental de descentralizar e redistribuir cultura, algo que nunca deixará de ser necessário, com ou sem copyright.

Dos piratas do século XV às práticas de colagem surrealista ou détournement situacionista; das rádios livres na Itália dos anos 70 às rádios piratas do Brasil dos anos 90; do boom da internet e da popularização das práticas de difusão de conteúdo que burlam o direito à propriedade intelectual ao revés centralizador dos monopólios de streaming:
falamos um pouco disso tudo e mais um pouco. Balanço e Fúria, aliás, é um dos podcasts mais interessantes a falar de música e política, do punk reggae party ao jazz afropindorâmico, passando por cumbia, Sistas grrrl’s riot, hip hop hackers, música experimental e atonal, free jazz, blaxploitation, punk chinês, queercore, entre outros muitos temas. Não perca também o projeto paralelo deles de Memória Gráfica da Contracultura

Dá pra ouvir direto aqui, além das plataformas habituais.

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Cultura livre como liberdade positiva https://baixacultura.org/2024/08/29/cultura-livre-como-liberdade-positiva/ https://baixacultura.org/2024/08/29/cultura-livre-como-liberdade-positiva/#comments Thu, 29 Aug 2024 22:52:29 +0000 https://baixacultura.org/?p=15712 Traduzimos um texto que nos convida a refletir sobre um tema sempre importante por aqui: a cultura livre. Foi publicado em maio de 2024 por Mariana Fossati, socióloga uruguaia e ativista da cultura livre, parte do Ártica Online, parceiro deste espaço já há muitos anos. Ao final, fiz alguns comentários a respeito de pontos do texto, como a insuficiência do acesso à informação e aos bens culturais para garantir que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural; e a necessidade de uma política do cuidado dentro das comunidades e movimentos da cultura livre.

 

CULTURA LIVRE COMO LIBERDADE POSITIVA

 

Por Mariana Fossati, em Ártica Cultural
Tradução e adaptação: Leonardo Foletto

 

Como definimos liberdade quando falamos de cultura livre? Há algum tempo, escrevi que a cultura livre não é apenas uma filosofia, expressa em práticas concretas através das quais tornamos as nossas obras livres quando as compartilhamos. A cultura livre se expressa não só na ética de “compartilhar é bom”, mas também, de modo concreto, nas licenças que utilizamos, onde e como compartilhamos – e também no apoio a reformas progressivas dos direitos de autor. Gostaria agora de voltar à dimensão filosófica da liberdade na cultura livre, com a intenção de clarificar para que é que fazemos cultura livre e porque é que a defendemos.

Muitas vezes, ao longo da minha militância neste tema, senti que falo de uma coisa quando falo de cultura livre, enquanto os críticos falam de outra. Sobretudo os críticos “de esquerda” acusam aqueles que defendem a cultura livre de serem liberais, ou associam “cultura livre” a “mercado livre”. Durante muito tempo ri destas associações grosseiras, mas sinto que hoje, mais do que nunca, e sobretudo no conceito de cultura livre, a noção de liberdade deve ser reapropriada pelos movimentos de defesa dos direitos, para nos diferenciarmos claramente dos movimentos de direita autodenominados “libertários”.

Num artigo crítico aos libertários em seu blog, Rolando Astarita, [conhecido professor de economia argentino, estudioso do marxismo] fala da diferença entre liberdade negativa e liberdade positiva, no sentido proposto por Isaiah Berlin. A liberdade negativa é a possibilidade do indivíduo atuar sem interferência ou coerção, e é limitada pela liberdade dos outros e pela lei. A liberdade positiva é a capacidade real de exercer a autonomia e de se auto-realizar, o que depende não só de cada pessoa, mas também de condicionantes sociais. É por isso que Astarita entende que a tradição marxista enfatiza sobretudo a liberdade positiva. 

O artigo de Astaria me serve como inspiração para este post, porque a cultura livre pode ser entendida desde qualquer uma destas noções de liberdade. Creio, porém, que é necessário esclarecer onde colocamos nossa ênfase.

Se entendermos a cultura livre em termos de liberdade negativa, nos resta apenas a ideia de acesso sem interferência a qualquer recurso cultural ou de informação de que um indivíduo possa necessitar. Desde que esse acesso seja legal e que não afete os direitos de propriedade de terceiros. Daí a importância da licença (que é um contrato privado) e a ênfase no fato de cada indivíduo ser livre de conceder autorizações de acesso e utilização da sua obra (sua propriedade privada). As licenças livres funcionam com base numa renúncia a uma parte dos direitos de propriedade intelectual. É minha liberdade, enquanto proprietário, de renunciar a uma parte desses direitos. Já o acesso aberto é a liberdade de acessar e utilizar toda a propriedade intelectual que outras pessoas disponibilizaram de forma aberta, dentro dos limites da licença que escolheram. É um sistema aparentemente equilibrado que reafirma a tese de que a propriedade, a liberdade e um mínimo de regulação estatal que as garanta são suficientes.

Mas se a nossa compreensão termina aqui, estamos perdendo algo fundamental. O efeito prático deste tipo particular de renúncia de cada indivíduo a uma parte da sua propriedade intelectual produz uma contribuição para o bem comum intelectual. Este bem comum, no seu conjunto, constitui uma reserva de conhecimentos que já não é uma questão individual ou contratual entre particulares, mas que nos remete para uma dimensão social e coletiva. É a partir daqui que a noção de liberdade negativa fica aquém, ao passo que a liberdade positiva permite alargar o horizonte e nos conduzir a uma noção de cultura livre que acompanha a proteção e o reforço dos bens comuns, juntamente com uma expansão dos direitos sociais.

A cultura livre, em termos de liberdade positiva, é a ideia de que deve haver recursos culturais abundantes, acessíveis e plurais, para que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural. O ativismo da cultura livre não é apenas a defesa da propriedade e da liberdade individual, mas a procura ativa do alargamento do direito de acesso, utilização e participação na cultura a toda a sociedade. Isto inclui a democratização radical da criatividade, do pensamento crítico, do conhecimento prático, do prazer estético, do entretenimento, da identidade e do patrimônio cultural.

Se persistem condições sociais que excluem muitas pessoas de usufruir efetivamente dos bens culturais, mesmo que formalmente não exista qualquer impedimento, então não podemos falar de liberdade. A falta de recursos econômicos, de acesso a infraestruturas culturais, de conetividade significativa, de educação pública de qualidade, de diversidade de propostas culturais, ou de obras acessíveis, reutilizáveis e partilháveis, limitam a liberdade positiva das pessoas. Pode não haver censura ou controle estatal autoritário sobre os conteúdos que circulam – e, no entanto, ainda pode não haver liberdade cultural.

Por isso, a nossa militância pela cultura livre não se resume à afirmação da soberania individual de dar e receber recursos culturais, num cenário de propriedade intelectual garantida pelo Estado. A nossa militância é o alargamento da fruição e da participação na cultura a nível coletivo através da defesa dos bens culturais comuns. As licenças livres são, neste quadro, uma estratégia coletiva e não apenas uma opção individual, porque entendemos que, num contexto de crescente privatização da cultura, elas ajudam a construir, proteger e reforçar os bens culturais comuns para que cheguem a toda a comunidade. Queremos construir uma cultura livre para uma sociedade livre. Mas uma sociedade livre não é uma sociedade de proprietários livres, mas uma sociedade emancipada das estruturas de poder econômico e de privilégio social que obstruem este potencial coletivo.

 

BREVE COMENTÁRIOS À CULTURA LIVRE COMO LIBERDADE POSITIVA

Leonardo Foletto

Alguns comentários para dialogar e apontar discussões futuras para uma pensmento filosófico sobre a cultura livre. O argumento principal do curto e importante texto de Mariana é detalhado pela própria nos comentários ao post no blog. Para ela, as quatro liberdades da cultura e do software livre não podem ser vistas somente na perspectiva de liberdades negativas, a partir da diferenciação entre liberdade positiva e negativa trabalhada no texto. Isso ocorre por duas razões principais: a primeira é porque, na prática, ao libertar a cultura do direito autoral, geramos um bem comum e, normalmente, uma comunidade à sua volta, passando então para o nível do coletivo. A segunda é porque entendemos que “compartilhar é bom” não só para os indivíduos, mas para a comunidade, já que o acesso ao conhecimento é um direito básico para se poder exercer qualquer liberdade criativa – e há necessidades humanas, de ligação e de cultivo da uma cultura comum que são de ordem coletiva, e que são condicionantes para a autorrealização das pessoas. É uma visão que reitera a necessidade do progresso técnico e científico não ser exclusivo para poucos, mas sim generalizado.

Faço a ressalva que um tema crucial hoje na discussão sobre cultura livre não é trabalhado com ênfase no texto de Mariana: as assimetrias de poder envolvidas na questão do acesso à informação e aos bens comuns digitais. Não foi abordado porque não era intenção inicial, e também porque certamente renderia um texto muito mais longo – ou vários. O argumento central aqui, que discutimos também a partir do prefácio de Mckenzie Wark ao seu “Um Manifesto Hacker”, é de que a liberdade de acesso não tem se mostrado suficiente para garantir que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural, como defende Mariana no texto.

É uma situação parecida com a discussão em torno da inclusão digital: qual inclusão queremos? a das plataformas das big techs, baseada em sugar nossa atenção para extrair lucro a partir da produção contínua de dados? Aqui vale se perguntar também: qual acesso queremos? o acesso a lixo informacional e cultural, que entope e cansam nossas mentes e dificultam nossa percepção de uma realidade e ação comum? Se não é esse tipo, qual é? Existe alguma forma de se trabalhar os limites de ações de acesso sem tocar em questões mais complexas como a do tempo gasto e a da organização coletiva? Como me lembrou o Alexandre Abdo, quando falamos dos Pontos de Cultura e do programa Cultura Viva no Brasil, seu sucesso enquanto política pública e ação transformadora de pessoas e locais se deu mais com a capacidade de criar condições mínimas – financeiras, sociais e humanas – para as pessoas terem tempo e organização de usar, aperfeiçoar e cuidar do que foi produzido, do que somente a questão de se ter acesso a computadores com software livre instalados. Quando se desestruturou as condições mínimas citadas, o acesso aos computadores com software livre e a cultura livre criada em torno disso se tornou uma questão gradativamente menor, a ponto de ser abandonada por muitos pontos depois.

Mais acesso à informação, à tecnologias digitais ou a bens culturais não necessariamente significa consciência crítica, como escrevi em A Cultura é Livre. Lembro da crítica que César Rendueles [em Sociofobia] fez ao copyleft: romper as barreiras de livre circulação da informação e do acesso aos bens culturais não é suficiente para uma melhoria geral das condições de vida global sem tocar nas condições sociais de produção desses bens culturais e da informação. A enorme importância hoje do tema do trabalho digital, dada à proliferação do trabalho precário a partir da plataformização, confirma isso.

Um passo aqui, talvez, seja mais em direção a uma política do cuidado do que do acesso: como criar e pôr em prática protocolos de cuidado dentro das comunidades de bens comuns livres para que estes bens não sejam apropriados sem critérios, desrespeitando as indicações das licenças (livres) e usados para o enriquecimento de ainda menos pessoas, como no caso do uso de dados sem consentimento para treinamento e sistemas de Inteligência Artificial Generativa de empresas como Meta e Open IA? Como estabelecer condições sociais dignas de produção e fruição desses bens culturais e informativos alocados dentro da perspectiva da cultura livre?

Não há resposta clara aqui, mas talvez se fazer esta pergunta nos leve a repensar a cultura livre mais em termos de cuidado do que de acesso. Organização da abundância (de informação e bens culturais) que não seja baseada em restrição econômica e técnica como a promovida pela propriedade intelectual. O que nos leva a um outro ponto de reflexão não novo, mas cada vez mais pertinente: a reinvenção do sistema de direito autoral, agora baseado na idade de uma liberdade positiva, como Mariana aponta no texto, mas que não deixa de garantir a proteção e o cuidado com os abusos e as condições sociais de produção desses bens culturais. A cultura livre, enquanto movimento, representou de alguma forma uma “reforma cidadã” do direito autoral, com as licenças produzindo um espaço de “lei alternativa” que levou a descentralizar o controle e potencializar a inteligência e experiência humana. Será ainda possível pensar numa reforma de direito autoral que potencialize esses aspectos, sem descuidar da proteção e das assimetrias de poder típicas do capitalismo? Ou é mais provável que, com a popularização das IAs generativas, vejamos uma reforma imposta pelo capital que vá na linha de permitir a livre concentração, materializada nos modelos gigantes das big techs, a fim de cada vez mais potencializar uma (pseudo) inteligência artificial desregulada sob controle dessas grandes empresas e destinada a gerar renda (cada vez mais) para esse capital?

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Todo(s) ouvidos: 25 anos do Napster https://baixacultura.org/2024/08/09/todos-ouvidos-25-anos-do-napster/ https://baixacultura.org/2024/08/09/todos-ouvidos-25-anos-do-napster/#respond Fri, 09 Aug 2024 18:59:23 +0000 https://baixacultura.org/?p=15695 Há 25 anos, o Napster transformou a forma como ouvimos, consumimos e experimentamos entretenimento, tornando-se um dos serviços de compartilhamento de música mais icônicos e disruptivos da internet

Por Andressa Soilo*

Criado em 1999 por Shawn Fanning, um estudante de 19 anos insatisfeito com o modelo de distribuição musical da indústria fonográfica, e pelo igualmente jovem Sean Parker, que anos depois seria também o primeiro presidente do Facebook, o Napster rapidamente se tornou um instrumento de transformação cultural. A disponibilização de downloads gratuitos de músicas em MP3 não era uma novidade, mas os programas existentes naquele momento (IRC, Hotline e Usenet, por exemplo) não eram tão bons e fáceis de usar como o software criado principalmente por Fanning, programador autodidata – Parker entraria também com o investimento dos primeiros U$50 mil da empresa.

Menos de um ano depois do lançamento, o Napster já era um sucesso: registrava cerca de 14 mil músicas baixadas por minuto e contava com aproximadamente 75 milhões de usuários registrados, segundo Corey Rayburn. Sua base de usuários crescia cerca de 25% ao dia. Naquela época, o termo mais pesquisado nos sites de busca era “MP3”, e o programa de compartilhamento chegou a entrar para o Guinness Book of World Records como o empreendimento com o crescimento mais rápido de todos os tempos – até aquele momento. Em outubro de 2000, Fanning estampou uma icônica capa da revista Time, que considerou seu programa uma das maiores inovações da Internet, ao lado do e-mail e das mensagens instantâneas.

O programa transformou a forma de circulação e compartilhamento da música à época sobretudo por três aspectos: desafiava as normas de direitos autorais, ao promover abertamente a pirataria; apresentava um jovem que enfrentava o domínio da indústria musical; e incentivava um senso de coletividade e solidariedade entre seus usuários. A mensagem era: a música é livre! Acabou a obrigação financeira para acessar a música. O usuário apenas precisava se cadastrar, instalar o aplicativo do Napster no computador, buscar a música desejada e baixá-la. Não era mais necessário ir a uma loja física ou comprar um álbum inteiro apenas para ouvir uma ou duas faixas de um artista. E claro, não havia mais a necessidade de pagar os elevados preços impostos pelo mercado.

Embora a inovação tenha proporcionado a milhares de usuários de música na internet maior economia e autonomia no consumo, o Napster teve uma vida útil curta em seu formato de programa de downloads à margem da lei. Em 2001, após uma série de processos movidos pelas grandes gravadoras e pela Recording Industry Association of America (RIAA), que alegavam que o serviço facilitava a violação de direitos autorais, uma ordem judicial determinou que o Napster deveria interromper suas atividades.

No entanto, o breve período de atividade foi suficiente para abalar o status quo da indústria fonográfica. A popularidade do programa e sua capacidade de expressar insatisfações de consumidores em relação à indústria musical foram suficientes para forçar uma reinvenção na distribuição do entretenimento. O professor Kartik Hosanagar  da School of the University of Pennsylvania em entrevista para Knowledge at Warthon, reforça essa ideia:

“Com os downloads, o segmento mais baixo do mercado não vai pagar por isso porque a música pode ser obtida gratuitamente [por meio de pirataria]. O segmento mais alto do mercado achará o streaming mais conveniente porque tem acesso à música ‘a qualquer hora e em qualquer lugar’, em vez de comprar a música em um dispositivo e não ter acesso em outro (Knowledge at Wharton, disponível em: https://knowledge.wharton.upenn.edu/faculty/kartik-hosanagar/).”

Compartilhando sensos de justiça

As mudanças trazidas pelo Napster não foram apenas de ordem econômica, embora esse aspecto seja crucial para entender o impacto disruptivo do serviço. O software ajudou a formar novas percepções sobre o que é (in)tolerável no comportamento da indústria da música e fortaleceu sensos de justiça entre os consumidores, como escrevi em minha tese de doutorado sobre o tema***. A plataforma deu voz a um público que via desvantagens no modelo tradicional de distribuição da música. Os preços elevados, a possibilidade de conhecer artistas sem um comprometimento financeiro prévio e a falta de opções de compra “à la carte” deixaram de ser apenas desconfortos e se tornaram protestos.

A consolidação da percepção coletiva sobre a falta de atenção da indústria em relação ao seu público-alvo foi bem-sucedida. Noções e termos relacionados à “ganância” eram amplamente difundidos para desaprovar e contestar métodos e ações do setor fonográfico. Piadas, sátiras, sarcasmo e ironias se tornaram formas comuns para deslegitimar as práticas legais destinadas a combater a pirataria. Essas expressões têm relevância porque funcionam como instrumentos de atração e carisma, reforçando a moral dos críticos, ao mesmo tempo em que deslegitimam e desmoralizam a indústria do entretenimento e o Estado e suas leis.

Mas os agentes do status quo revidaram. Nos anos 2000, comparações entre pirataria e crimes como furto e roubo foram frequentes. Em 2007 a gravadora Universal Music Group promoveu uma campanha de publicidade anti-pirataria que envolvia imagens de partes desmembradas do corpo humano – como olhos, dedos, e orelhas – sugerindo que o download irregular de músicas suscitava na perda de partes dos corpos de músicos, como relatou Mike Masnik na Techdirt. Aqui mesmo no BaixaCultura há uma série dessas imagens compiladas, com frases como “Se você baixa MP3, você está baixando o comunismo” ou imagens como a de artistas consagrados (Elvis Presley, Jimi Hendrix, Jim Morrison) formada a partir de Cds virgens.

Essas comparações eram dirigidas não apenas a programadores e softwares de compartilhamento, mas também aos usuários desses serviços. Além de não oferecer condições de consumo atraentes para muitos usuários, organizações representativas de estúdios e gravadoras passaram a tratar o público – e não apenas os programadores – como moralmente suspeitos, rotulando-os de ladrões de dinheiro, carreiras e sonhos de artistas.

É possível entender essa disputa narrativa como um dos principais coveiros do formato tradicional de distribuição de música. Não foram apenas o Napster, como ferramenta de compartilhamento, nem os altos preços e as restrições de acesso que provocaram essa transformação. Emoções, sentimentos, percepções e interpretações do público consumidor — que o Napster, como ferramenta sociotécnica, conseguiu amplificar — desempenharam um papel determinante na necessidade de reestruturar o mercado.

O Napster ainda existe em 2024 – como streaming pago

 

Legados do Napster

Mas de quais transformações estamos falando? Em última análise, as mudanças ocorridas nos últimos 25 anos podem ser entendidas como uma reavaliação da indústria em resposta às percepções e interesses levantados pela pirataria e seus agentes. Como resultado, houve um esforço significativo em confluir lógicas coletivas e lógicas corporativas em um mesmo espaço a fim de reconquistar consumidores e direcioná-los de volta para o mercado legalizado do entretenimento.

Na prática, o legado do Napster pode ser percebido em diversas de nossas relações cotidianas com o consumo de música, mas destaco uma herança marcada por três movimentos: a consistente presença da música no espaço online; o acesso mais barato em comparação a décadas passadas; e o surgimento dos serviços de streaming.

Talvez a resposta mais notável da indústria neste momento seja o desenvolvimento e aprimoramento de plataformas de streaming, tendo o Spotify como o principal exemplo, mas também o próprio Napster, que hoje ainda existe como um serviço de streaming pago. Como já dito aqui no BaixaCultura, a indústria soube ouvir uma demanda de quem usava o Napster e os torrents para ter acesso à diversas produções culturais mundiais: faça melhor que eu pago. Mesmo envoltas por regulações de propriedade intelectual, as plataformas de streaming assimilam alguns dos princípios de justiça promovidos pela pirataria – pelo menos no que diz respeito aos usuários, já que os artistas continuam sendo remunerados de forma confusa, pra não dizer injusta.

Algumas dessas similaridades entre plataformas de streaming e softwares como o Napster são o (relativo) baixo custo do acesso à música (pelo menos em comparação aos CDs e LPs), o que dá a sensação de “gratuidade”; a praticidade destes serviços – basta assinar e já é possível ter acesso a um universo de músicas, um modo mais fácil e passivo de consumo musical que a busca ativa em serviços como o Napster e os torrents; a maior interatividade com o público, propiciada (e estimulada) pelos algoritmos dos serviços de streaming também como forma de manter mais tempo o usuário conectado “preso” aos domínios das plataformas. Essas características não estão limitadas a seus aspectos técnicos; descendem de uma cadeia de eventos em que percepções, valores e emoções foram (e são) constantemente negociados.

É pertinente pensarmos que a indústria musical de hoje é produzida a partir de relações coprodutivas entre pirataria e sistemas orientados por direitos autorais. A pirataria segue, como sempre ocorre, às margens do universo legalizado, mas a habita de modo central e constante. Nesse diálogo, os sistemas de direitos autorais, por sua vez, precisam constantemente se adaptar a essa dinâmica, buscando formas de integrar e regular essas práticas em um cenário em constante evolução. A interdependência entre esses dois elementos destaca a complexidade do mercado atual e a necessidade de atualizações de abordagens para equilibrar acesso, proteção e remuneração no setor musical. A pirataria, longe de ser uma força periférica, desempenha um papel crucial no setor musical, moldando não apenas o consumo, mas também a forma como as estratégias comerciais são elaboradas.

É interessante percebermos como as categorias do legal e ilegal não são completamente dissociadas quando tratamos de indústria fonográfica. Pelo contrário, estão em constante diálogo traçando e redefinindo fronteiras sociais do aceitável e do inaceitável. E se hoje muitos desfrutam de músicas através de plataformas de streaming legalizadas, não há espaço para pensar que nos distanciamos tanto da pirataria.

Muitos dos princípios, demandas e inovações de um quarto de século atrás continuam presentes tanto em tecnologias mainstream, quanto em plataformas como o Streamio e demais sobreviventes de buscas de torrents – mas isso é papo para outro texto.

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*: Andressa é Doutora e mestra em Antropologia Social pela UFRGS, atualmente professora da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Erechim.
**: Como está registrado em BRUENGER, David. 2016. Making Money, Making Music: History and Core Concepts. University of California Press. Disponível em: https://archive.org/details/isbn_2900520292597
***: SOILO, Andressa Nunes. Habitando a distribuição do entretenimento : regime de propriedade intelectual, a tecnologia streaming e a “pirataria” digital em coautoria. 2019. 290f. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/200183

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https://baixacultura.org/2024/08/09/todos-ouvidos-25-anos-do-napster/feed/ 0
Reflorestar a internet https://baixacultura.org/2024/07/26/reflorestar-a-internet/ https://baixacultura.org/2024/07/26/reflorestar-a-internet/#comments Fri, 26 Jul 2024 18:45:45 +0000 https://baixacultura.org/?p=15683 Li nas últimas semanas um artigo instigante, chamado “We Need to Rewild the Internet”, publicado pela também interessante Revista Noemag, feita pelo Instituto Berggruen, sediado nos Estados Unidos – o artigo também saiu em ptbr pelo Outras Palavras. As autoras são Maria Farrel e Robin Berjon; a primeira é escritora que trabalhou com políticas de tecnologia em espaços como a Câmara Internacional de Comércio e o Banco Mundial; o segundo, especialista em governança digital que trabalhou em diversos lugares, inclusive no board de diretores do World Wide Web Consortium. Estamos falando então de duas pessoas da área de governança e policy digital, não cientistas, ativistas nem filósofos ou antropólogos da tecnologia. 

A “alternativa refloresta”, como fala a versão publicada no Brasil, traz a inspiração da agroecologia para repovoar a internet de forma mais saudável, de modo a afastar os oligopólios, refazer as estruturas e esperar, assim, que a diversidade da internet, tal como uma floresta, renasça. O artigo começa pela história da silvicultura científica alemã para apresentar  “uma verdade atemporal: quando simplificamos sistemas complexos, os destruímos e as consequências devastadoras por vezes só são óbvias quando é tarde demais”. A “patologia do comando e controle” realizada nas florestas alemãs está ocorrendo com a Internet, levando ambas ao mesmo destino: devastação. 

Maria Farrell e Robin Berjon trazem também exemplos do urbanismo para defender a diversidade como resiliência. “Os bairros de uso misto eram os mais seguros, mais felizes, mais prósperos do que os bairros planejados e controlados”, citando o clássico publicado em 1961 “The Death and Life of Great American Cities”, de Jane Jacobs, para defender a diversidade como resiliência. “Quanto mais soluções proprietárias são construídas e implantadas em vez de soluções colaborativas baseadas em padrões abertos, menos a Internet sobrevive como plataforma para inovação futura”.

Daí vem o rewilding, um termo que, na biologia, visa restaurar ecossistemas saudáveis criando espaços selvagens e biodiversos, o que pode abrir espaço a redes alimentares complexas para o surgimento de relações inesperadas entre espécies. Fazer um rewilding com a Internet, argumenta o texto, é mais do que uma metáfora, mas uma estrutura e um plano, que busca respostas para diversas questões, entre elas: como continuamos a trabalhar quando os monopólios têm mais dinheiro e poder? Como agimos coletivamente quando eles subornam nossos espaços comunitários, financiamentos e redes? E como comunicamos aos nossos aliados a sensação (e a necessidade) de consertar tudo isso?

Pôr em prática este plano passa por muitos fatores, entre eles dois principais: descentralizar o acesso e dar mais autonomia aos usuários. Algo como o que já fazem sistemas como o conhecido Fediverse, um conjunto de servidores federados usados para publicação na web e hospedagem de arquivos, base por trás de Mastodon e GnuSocial – uma proposta, aliás, que já está em nosso “Pequeno Compêndio da Independência Independência Digital”, criado 2021 em parceria com o Goethe Institut de Porto Alegre.

O texto fala que devemos garantir incentivos, tanto regulatórios e financeiros, para apoiar alternativas que incluam o gerenciamento de recursos comuns, redes comunitárias e “uma infinidade de outros mecanismos de colaboração que as pessoas têm usado para fornecer bens públicos essenciais, como estradas, defesa e água potável”. A construção de novos imaginários tecnopolíticos – algo que falamos com alguma frequência aqui e balizador do projeto de Experimentações Tecnopolíticas dentro da Coalizão Direitos na Rede – aqui é incentivada por autores que não estão trabalhando diretamente no campo ativista ou político, mas no de policy makers. Embora em áreas teóricas distintas, o trecho a seguir dialoga com Geert Lovink em seu “Extinção da Internet” que publicamos ano passado: “Acomodados em plantações tecnológicas rígidas em vez de ecossistemas funcionais e diversificados, é difícil imaginar alternativas. Mesmo aqueles que conseguem enxergar com clareza podem se sentir desamparados e sozinhos. Rewilding une tudo o que sabemos que precisamos fazer e traz consigo uma caixa de ferramentas e uma visão totalmente novas”.

Nessa linha, a ideia de “escolha algorítmica”, citada no texto a partir da rede Bluesky, lembra o ecossistema de produção de software de código aberto: é uma proposta que permite que a comunidade traga novos algoritmos aos usuários, com o objetivo de substituir o “algoritmo mestre” convencional, controlado por uma única empresa, por um “mercado de algoritmos” aberto e diversificado, dando mais transparência para o processo de escolha das informações a serem mostradas em feeds diversos. Tal qual na ecologia, o papel do Estado aqui é pensado para potencializar as alternativas de substituição aos monopólios/monoculturas, sejam elas de produção de alimentos ou de algorítmicos. A posição da alternativa rewilding é a de usar agressivamente o Estado de Direito para primeiro nivelar o capital e o poder desiguais e, em seguida, correr para preencher as lacunas com melhores maneiras de fazer as coisas.

Outra ideia importante da proposta é a de descentralização da infraestrutura. Não é novidade que Google, Amazon, Microsoft e Meta estão consolidando profundamente seu controle na infraestrutura da internet a partir de aquisições, integração de cima pra baixo, construção de redes proprietárias, criação de pontos de estrangulamento e concentração de funções de diferentes camadas técnicas em um único “silo” de controle. Você também deve saber que quem controla a infraestrutura determina o futuro – inclusive o energético, tema cada vez mais comentado hoje devido às gigantescas necessidades de água e energia que os data centers necessitam para fazer tantas IAs generativas funcionarem.

Contra isso, a proposta do texto é não consertar, mas refazer a infraestrutura. Proposta ousada: regenerar uma infraestrutura aberta e competitiva para as gerações “que foram criadas para assumir que duas ou três plataformas, duas lojas de aplicativos, dois sistemas operacionais, dois navegadores, uma nuvem/megaloja e um único mecanismo de busca para o mundo compreende a Internet” . Se a Internet para você é o enorme silo de arranha-céus em que você mora e a única coisa que você pode ver do lado de fora é o outro enorme silo de arranha-céus, então como você pode imaginar outra coisa?

Na etapa final, o artigo fala que apesar da enorme dificuldade da tarefa, “muito do que precisamos já está aqui”. Os autores comentam, nesse ponto, dos limites das políticas regulatórias: “além de os reguladores buscarem coragem, visão e novas e ousadas estratégias de litígio, precisamos de políticas governamentais vigorosas e pró-competitivas em relação a aquisições, investimentos e infraestrutura física.”

Aqui também citam duas questões ligadas à soberania digital – embora não usem o termo. Defendem que as universidades devem rejeitar o financiamento de pesquisas de empresas de tecnologia, “pois ele sempre vem acompanhado de condições, sejam elas ditas ou não”. Em vez disso, precisamos de mais pesquisas tecnológicas financiadas publicamente com resultados divulgados publicamente – pesquisas que, por exemplo, possam investigar a concentração de poder no ecossistema da Internet e as alternativas práticas a ela. 

Ao final da leitura, saúdo o fato de que mesmo pessoas de “dentro do sistema” (ou quase isso) reconheçam que devemos recuperar o controle de grande parte da infraestrutura da Internet e propor uma alternativa à monocultura algorítmica imposta pelas big techs a partir da plataformização da vida. Não deixo de notar também que as saídas apontadas por eles também não são novidades, mas caminhos que outras pessoas já comentam faz alguns anos. Por exemplo: uma destas saídas escrita no texto é manter a internet, a internet – ou seja: defender que se mantenha aberta e colaborativa a forma como foram feitos os protocolos e padrões técnicos que sustentam a infraestrutura da Internet. Algo que muita gente da área vem dizendo há anos, seja o criador da WWW Tim Berners-Lee, ou eu mesmo, em 2011, num texto hoje ingênuo de defesa de uma internet livre, onde citava Yochai Benkler e Lawrence Lessig para falar que podemos manter a internet – também tecnicamente – do jeito que ela foi feita a partir de nossa luta ativista. 

Curioso que, neste mesmo texto, cito como espaço de proteção desses princípios o Fórum da Internet, evento que naquele ano (2011) era criado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil justamente para defender a internet como ela foi construída. Participei desse primeiro fórum como relator e lembro bem dos 10 princípios defendidos, que incluía a defesa da neutralidade (privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento), da inimputabilidade (a internet é meio, não fim; as medidas de combates a crimes na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios), dentre outros oito. De lá pra cá, o CGI continuou defendendo esses princípios, que, por sua vez, foram ou violados – zero rating manda lembranças à neutralidade da rede – ou se tornaram questionáveis – hoje é quase consenso por quem defende a regulação das plataformas a defesa da responsabilidade dos intermediários, os meios, as plataformas, e não apenas os usuários finais.

Outro princípio elencado como saída na alternativa “refloresta” soa um tanto velho também: que os prestadores de serviços – e não os usuários – sejam transparentes. Uma frase que poderia ser bem uma variação do que Julian Assange e o Wikileaks já traziam nos anos 2000: “Transparência para os fortes, privacidade para os fracos”. Este era o lema  quando defendiam uma ética da transparência contra o muito falado fim da privacidade, especialmente a partir do uso de criptografia forte – outro ponto que nós já discutimos por aqui, ainda em 2015, e que por sua vez é a base conceitual dos Manifestos Cypherpunks do início dos anos 1990.

O fato dos caminhos apontados em “We Need To Rewild The Internet“ soarem um tanto velhos não desmerece a leitura do texto e a reflexão (e ação) a partir dele. Pelo contrário: nesse momento de aceleração contínua a partir do impulso das tecnologias digitais e dos algoritmos proprietários na modulação de nossas vidas, parece que se faz necessário dizer novamente o que já foi dito. Repetição como estratégia de fixação, documentação,  memória, ou de lembrança de que, de fato, muita coisa “já está aqui”, falta levar adiante.

[Leonardo Foletto]

P.s: Depois de publicado, me lembrei que essa metáfora do reflorestar se relaciona com a ideia de permacultura digital, que vem sido trabalhada faz anos pelas Redes das Produtoras Culturais Colaborativas, especialmente a partir de Fabs Balvedi. Inclusive foi tema da Conferência Nacional de Cultura Digital neste 2024, como contamos aqui. Outro texto que comenta a ideia de ir contra a monocultura algorítmica da internet é este, recentemente publicado no blog Sou Ciência, da Folha de S. Paulo, por Soraya Smaili , Maria Angélica Minhoto , Pedro Arantes e Alexsandro Carvalho. As metáforas estão parecidas não são por acaso.

 

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