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Uma nova primavera para o direito Autoral das IAs

 

As tecnologias de IA atingiram um nível de popularidade nunca antes visto. Como essa nova onipresença afeta o uso justo e a criação de novas obras?

Por Lukas Ruthes Gonçalves*

O primeiro inverno da IA ​​aconteceu em 1974, depois que um relatório encomendado pelo Conselho de Pesquisa Científica do Reino Unido criticou como a IA não conseguiu atingir seus objetivos na época e observou que “em nenhuma parte do campo as descobertas feitas até agora produziram o grande impacto que então se prometia**.”O que se seguiu foi uma queda na popularidade das tecnologias relacionadas ao campo que durou até 1980, após uma empolgação inicial com criações feitas pelo próprio computador.

Voltando aos conceitos fundamentais: um aplicativo de IA, não diferente de qualquer computador, precisa de 3 elementos-chave para funcionar corretamente: hardware, que roda um software que depende de dados para produzir resultados. A principal diferença é que a inteligência artificial executa “tarefas que normalmente exigiriam inteligência humana, como percepção visual, reconhecimento de fala, tomada de decisão e tradução de idiomas”. Essa é uma definição de John McCarthy, um dos principais pesquisadores da área, durante a Conferência de Dartmouth de 1956, que buscava unificar os diversos esforços de pesquisa da época sob uma única bandeira. Até Alan Turing faria a pergunta se as máquinas podem pensar em sua obra seminal “Computing Machinery and Intelligence”, de 1950.

A principal razão para aquele primeiro inverno de IA foi a falta de capacidade de processamento do hardware na época. Pesquisadores de IA durante a década de 1970 perceberam que era muito mais fácil ensinar um aplicativo a jogar xadrez do que levantar uma caneta, em um fenômeno apelidado de Paradoxo de Moravec. Habilidades mentais que são tidas como certas (como andar ou reconhecer um rosto) acabam exigindo um poder computacional muito maior do que calcular o pi, por exemplo. Isso torna os problemas difíceis fáceis e os fáceis difíceis. É por isso que a pesquisa em visão computacional e robótica fez pouco progresso durante a década de 1970.

Na década de 1980, o hardware havia melhorado, com sistemas como máquinas LISP se tornando mais populares e sendo anunciados como capazes de simular as capacidades de tomada de decisão dos humanos. No entanto, computadores pessoais menores de empresas como Apple e IBM começaram a ganhar força entre a população, pois hardware especializado como as máquinas LISP eram muito caros para manter e incapazes de lidar adequadamente com entradas incomuns. Isso trouxe o segundo inverno de IA em 1993, com a popularidade na área atingindo um novo ponto baixo.

Desde então muita coisa mudou. O hardware continuou a melhorar (de acordo com a Lei de Moore), com os computadores ficando menores e mais potentes a cada geração. E com o crescimento da internet toda a capacidade computacional não precisava mais estar localizada em um único lugar. Em vez disso, para empresas como o Google, ele pode ser distribuído em todo o mundo. Além disso, o aumento da popularidade da internet com o público em geral criou a oportunidade para mais pontos de dados do que nunca. Os aplicativos de IA mais recentes começaram a utilizar o hardware em rápido desenvolvimento, o software em evolução e o aumento dos dados para florescer.

Em uma nova primavera para aplicativos de IA, podemos encontrar hoje aqueles que podem gerar arte (Dall-E 2), criar textos de vários tipos (ChatGPT) e traduzir com mais precisão, entre outros inúmeros usos. No entanto, a rápida implantação dessas ferramentas de IA está atraindo novos desafios. Existem preocupações sobre o uso de obras protegidas por direitos autorais para treinar IA; nem todo mundo está feliz com o fato de que esses aplicativos podem repentinamente escrever livros infantis ou ganhar competições de arte. Com o escrutínio dessas aplicações cada vez maiores, os legisladores e o público em todo o mundo começaram a olhar para essas caixas misteriosas com maior interesse.

Gerado usando ChatGPT com o seguinte prompt: “Como você escreveria ‘A Dream of Spring for AI Copyright’ no estilo de George R. R. Martin?”

Enquanto alguns recepcionam com entusiasmo esses desenvolvimentos de IA, outros vêem isso com ceticismo, já entrando com ações judiciais contra aplicações de IA de geração de obras de arte nos EUA e no Reino Unido. O cerne da questão é se esses sistemas infringiram os direitos autorais dos artistas para gerar suas criações. Um caso iniciado em solo americano tem como autores três artistas que iniciaram uma ação coletiva contra os aplicativos de IA Stability.ai e Midjourney, e contra o repositório de imagens DeviantArt alegando violação direta e indireta de direitos autorais, violações de DMCA e concorrência desleal. A denúncia pode ser encontrada aqui. Especificamente, os artistas afirmam que os réus “pegaram bilhões de imagens de treinamento extraídas de sites públicos” e as usaram “para produzir imagens aparentemente novas por meio de um processo de software matemático”.

O caso do Reino Unido segue na mesma linha, com a Getty Images processando a Stability.ai alegando que esta “violou direitos de propriedade intelectual, incluindo direitos autorais em conteúdo de propriedade ou representado pela Getty Images”. O argumento é semelhante ao caso dos EUA, em que o réu “copiou e processou ilegalmente milhões de imagens protegidas por direitos autorais e os metadados associados pertencentes ou representados pela Getty Images, sem uma licença, para beneficiar os interesses comerciais da Stability AI e em detrimento dos criadores de conteúdo”.

Deixando de lado os aspectos técnicos de como é feito o treinamento de uma aplicação de IA (veja aqui uma ótima explicação sobre o assunto), o cerne não só dessas duas ações, mas do funcionamento dos aplicativos de IA como um todo, é se a extração de conteúdo de terceiros para ser utilizado como dados de treinamento de uma aplicação do tipo pode ser considerada fair use (uso justo). Conceitualmente, a mineração de dados é a digitalização de grandes quantidades de dados para uso em um software com o objetivo de analisar e extrair informações dessas bases.

Nos EUA, este tópico é regulado pelo §107 da Lei de Direitos Autorais, que estabelece como uso justo de uma obra protegida por direitos autorais – portanto, não violação – a reprodução para fins como crítica, comentário, notícias, ensino, bolsa de estudos ou pesquisa. A lei estabelece quatro fatores para determinar se um uso seria considerado “justo”: a finalidade e o caráter do uso; a natureza da obra protegida por direitos autorais; a quantidade que foi copiada; e seu efeito potencial no mercado dessa obra. Esse tipo de exceção flexível estabelecida pelo fair use tem sido a interpretação usada pelos tribunais dos Estados Unidos para permitir alguns usos de mineração de textos e dados (em inglês, TDM) necessários para aplicativos de IA poderem gerar imagens, como aponta Jonathan Band.

Um caso marcante para o tópico, Authors Guild, Inc. v. Google, Inc., ouvido pelo Tribunal de Apelações do Segundo Circuito (Court of Appeals for the Second Circuit) entre 2005 e 2015, chegou à conclusão de que a tentativa do Google de digitalizar livros para uso em seu buscador foi vista como um passo transformador para as bibliotecas – mesmo que a empresa não tenha solicitado autorização para este uso. Com este julgamento, que considerou tais práticas de TDM como uso justo, abriu-se um precedente chave que atualmente é invocado pelos fabricantes de aplicativos de IA para apoiar legalmente suas práticas.

No entanto, essa decisão é cada vez mais questionada, com os veículos de notícia agora mais cautelosos com a “dieta de mídia” dos chatbots do Bing e o governo do Reino Unido restringindo a expansão das exceções do TDM. Os casos mencionados acima desafiarão esse entendimento? O entendimento de como essa tecnologia funciona é incipiente e levará tempo até que os advogados consigam entender completamente o conceito para considerar propostas que não freiam o avanço de tecnologias inovadoras como a IA.

Este é apenas mais um exemplo de como o uso justo e as limitações e exceções são importantes para o avanço de novas tecnologias. A doutrina de uso justo tornou-se um dos pilares legais dos quais os aplicativos de IA dependem. Sua defesa e ampliação são primordiais para que criadores e inventores possam continuar a recombinar conhecimentos existentes para criar novas e excitantes possibilidades, como faziam anteriormente com a câmera e programas de edição de imagens como o Photoshop. Isso garantirá uma longa primavera para as ferramentas de IA e as novas obras de arte e inovações que artistas, músicos, pesquisadores e o público em geral criarão utilizando-as.

*: Lukas Ruthes Gonçalves é Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), apresentando dissertação sobre Autoria de IA orientada pelo Professor Marcos Wachowicz e é agora Doutorando pela mesma instituição. É também membro do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR), liderado pelo Professor Marcos Wachowicz e LLM em Propriedade Intelectual e Tecnologia pela American University Washington College of Law.  Texto originalmente publicado em inglês no Projeto Disco. Tradução: Leonardo Foletto

**: Lighthill, J. (1973), “Artificial intelligence: a general survey”, Artificial intelligence: a paper symposium

A imagem de capa do post foi gerada usando DALL-E com o seguinte prompt: “Um desenho realista de uma paisagem de primavera com um pequeno robô no meio olhando para o horizonte”.

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