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Revalorizar o plágio na criação (1)

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Como já comentamos no post sobre o detournament algum tempo atrás, e no comentário sobre as vantagens financeiras do anticopyright, o plágio, em sua forma criativa, vem sido pouco falado atualmente, especialmente quando se tem relacionado as mudanças na cultura a partir da evolução da cultura digital. Esquece-se, propositalmente ou não, do rico cabedal de informações que a rede já hoje nos proporciona para a criação de algo novo, que potencializa enormemente, e como nunca antes, a criação.

Para tentar discutir estas e outras questões, publicamos hoje uma primeira versão de uma espécie de ensaio sobre o assunto. É um texto livremente plagiado de “Plágio, hipertextualidade e produção cultural eletrônica”, capítulo quatro de “Distúrbio Eletrônico” do Critical Art Ensemble (publicado no Brasil pela coleção Baderna da Editora Conrad, em 2001), com trechos recombinados de outros textos, alguns deles destacados ao final da segunda parte como uma espécie de bibliografia, e outros sutilmente citados – tão sutis que nem lembramos mais de onde nos surgiu aquela ideia/palavra/citação.

Vamos publicar em duas partes, totalmente work in progress; qualquer comentário/colocação/inquietação/crítica é muito bem-vinda. Depois destas duas partes do ensaio, uma outra edição – digamos, revista, ampliada e remisturada – será  publicada posteriormente em versão impressa.

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Revalorizar o Plágio na Criação

Pegue suas próprias palavras ou as palavras a serem ditas para serem ‘as próprias palavras’ de qualquer outra pessoa morta ou viva. Você logo verá que as palavras não pertencem a ninguém. As palavras tem uma vitalidade própria. Supõem-se que os poetas libertam as palavras – e não que as acorrentam em frases. Os poetas não têm “suas próprias palavras”. Os escritores não são os donos de suas palavras. Desde quando as palavras pertencem a alguém?”Suas próprias palavras”, ora bolas! E quem é você?”

Não é de hoje que o plágio tem sido considerado um mal no mundo cultural. Normalmente, a palavra é usada para designar algo francamente ruim, um “roubo” de linguagens, ideias e imagens executado por pessoas pouco talentosas que só querem aumentar sua fortuna ou seu prestígio pessoal. No entanto, como a maioria das mitologias, o mito do plágio pode ser facilmente invertido. Não é exagero dizer que as ações dos plagiadores, em determinadas condições sociais, podem ser as que mais contribuem para o enriquecimento cultural.

Antes do Iluminismo, por exemplo, o plágio era muito utilizado na disseminação de ideias. Um poeta inglês poderia se apropriar de um soneto do poeta italiano Francesco Petrarca, traduzi-lo e dizer que era seu. De acordo com a estética clássica de arte enquanto imitação, esta era uma prática aceitável e até incentivada, pois tinha grande valor na disseminação da obra para regiões que de outro modo nunca teriam como ter acesso. Obras de escritores ingleses que faziam parte dessa tradição –  Geofrey Chaucer,  Edmund Spenser, Laurence Sterne e inclusive o todo-poderoso Shakespeare – ainda são parte vital de uma tradição inglesa, e continuam a fazer parte do cânone literário até hoje.

O Afetado Laurence Sterne (17613-168), autor de “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”, paródia dos romances ingleses da época
 

No oriente, a idéia do plágio é ainda mais disseminada. O plágio é parte do processo de aprendizado. Todos começam a escrever, calcular, dançar e se socializar por meio da imitação e da cópia. A estrutura social, da mitologia à autoajuda, é perpetuada pela reprodução. Mesmo entre os criativos são raros os músicos, escritores ou pintores que não tenham no plágio seu ponto de partida.

Ao mesmo tempo em que a necessidade de sua utilização aumentou com o passar dos séculos, o plágio foi, paradoxalmente, sendo jogado na “clandestinidade”, acusado de ser um crime de má fé contra à sobrevivência dos autores. Passou, então, a ser camuflado em um novo léxico por aqueles desejosos de explorar essa prática enquanto método e como uma forma legitimada de discurso cultural.

Chineses riem com “Fonte”, de Marcel Duchamp, criados dos ready mades
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Assim é que, durante o século XX, surgem práticas como o ready-made, colagens, intertextos, remix, mashup, machinima e detournement, todas elas representando, em maior ou menor grau, incursões de plágio. Embora cada uma destas práticas tenha a sua particularidade, todas cruzam uma série de significados básicos à filosofia e à atividade de plagiar, pressupondo que nenhuma estrutura dentro de um determinado texto dê um significado universal e indispensável.

A filosofia manifestada nestas ações ainda hoje subversivas é a de que nenhuma obra de arte ou de filosofia se esgota em si mesma; todas elas sempre estiveram relacionadas com o sistema de vida vigente da sociedade na qual se tornaram eminentes. A prática do plágio, nesse sentido, se coloca historicamente contra o privilégio de qualquer texto fundado em mitos legitimadores como os científicos ou espirituais. O plagiador vê todos os objetos como iguais, e assim horizontaliza o plano do sua ação; todos os textos tornam-se potencialmente utilizáveis e reutilizáveis.

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O post seguinte está aqui.

Créditos imagens: 1,2, 3

 

Comments:

  • Catatau

    Creio que deve haver muito cuidado nessa hora porque o texto parece fazer passar por baixo do tapete também conotações ruins de plágio.

    Em primeiro lugar, de repente não poderia ser escolhida outra palavra? Por exemplo, só para dar um chute, “bricolage”, “apropriação”, etc.. O texto pretende passar a idéia de que os autores não são donos de suas palavras, que as palavras possuem uma autonomia própria, e assim portanto é uma arte criar novas direções a partir das possibilidades “poéticas” das coisas. Assim, diversos “autores” tentaram na história do mundo encerrar essas possibilidades poéticas dentro de nomes, como se a criação pertencesse a alguma autoridade autoral.

    Isso tudo é correto, mas… o uso predominante de plágio é o mau uso, é uma reedição daquele uso que o próprio texto pretende criticar. O plagiador, e especialmente o plagiador de nossa época, rouba a ‘idéia’ (digamos assim, e entre aspas) de outra identidade autoral para afirmar a sua própria identidade autoral. Não se retira a ‘idéia’ de seu cárcere autoral; apenas se transfere o cárcere e até sob uma certa degenerescência (pois pelo menos o primeiro autor, mesmo errado, tentava criar).

    Assim o termo “plágio” parece não ser uma escolha muito feliz, pois é tentar positivar um termo em si mesmo negativo. Os plágios históricos descritos acima, no ocidente e no oriente, não são plágios, mas apropriações. Plágio, por definição, é o roubo da idéia de outro, e seria necessário um trabalho retórico a mais para deixá-lo positivo. Trabalho aparentemente desnecessário, visto outros termos muito interessantes para dizer a mesma coisa.

    Não por acaso “plágio” tem a etimologia de “roubo de escravos” – e não no sentido de “libertação” deles.

  • Catatau

    ah sim, vendo o nome da editora Conrad, um exemplo: no “plágio” de Hakim Bey para o termo “terrorismo”, ele o cunhou com outro termo, “poético”.

    Assim ele “plagiou” (apropriou-se? agenciou? bricolou?) um termo, mas de que modo? Ele extraiu do “terrorismo” alguns de seus “traços”: uma invasão súbida e arrebatadora da alteridade, provocando um deslocamento das relações cotidianas do objeto-alvo do “terror”; isto é, não sei se plagiou propriamente o termo “terrorismo”, ou se ele tentou fazer algo mais do tipo do Guattari e do Deleuze (se o que eles fazem é diferente de plágio), no sentido de compor virtualidades novas a partir de coisas antigas, mais ou menos como o texto do post pretendeu situar.

    E ao mesmo tempo ele utilizou aquele conteúdo extraído cruzando-o com “poético”. O terrorismo poético não é terrorismo, é outra coisa; e também não é propriamente arte institucionalizada, é outra coisa. É a tentativa de trazer, por meio de algo semelhante a um assalto, um arrebatamento, um deslocamento das relações familiares e cotidianas para o cultivo de, digamos, “devires poéticos’.

    Seria essa operação de apropriação um plágio? Ou chamá-la de plágio faz juz à apropriação? Não seria interessante ou retirar a denotação plágio, ou compô-la como fez Bey? É mais ou menos o problema que tentei colocar acima. No mais, parabéns pelo blog!

    abraço,

  • Baixacultura

    Catatau,
    Obrigadíssimo pelas excelentes colocações, que nos fizeram muito pensar para te responder à altura. Desistimos quando nos demos conta que não conseguiríamos, mas igual, aí vão alguns comentários:
    _ É um problema a não se desprezar o fato de que a palavra plágio carrega fortes conotações ruins, e não de hoje, como tu bem explicou.
    Mas é fato também que não podemos – ou não queremos – usar outra palavra justamente porque ela tem um, digamos, rico histórico de negatividade que não há como desprezar na hora da significação.
    _ Talvez palavras como apropriação, bricolage, etc sejam mais apropriadas do que o plágio para usar em textos como esse. Seria mais fácil, inclusive, usar estas palavras. Mas talvez não teria graça – além de forçar uma proximidade que não é tão interessante quanto desmitificar a ideia negativa do plágio.
    Enfim, agrademos tua contribuição, Catatau, que desde já nos trouxe um ponto de vista até então não havíamos pensado com a devida atenção. Quem sabe não continuemos a conversa?
    abraço!

  • geny de jesus dos santos guedes

    CREIO QUE NADA SE CRIA TUDO SE COPIA
    E SO OBSERVAR A NATUREZA E CONSTATAR.

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