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A política vicejante se manifesta

 

Em véspera de eleição, nada melhor que um texto irônico/certeiro para ecoar em nossas mentes político-torcedoras.O Manifesto da Esquerda Vicejante foi escrito em 1994 e, 11 anos depois, virou livro de mesmo nome, somado com mais outros textos da mesma linha do  jornalista e poeta pernambucano Marcelo Mário de Melo, um esquerdista de carterrinha ainda hoje . É uma série de “leis” (36) mordazes (e engraçadas) pra caramba sobre a falência das esquerdas e, de um modo geral, de toda a política – que como gostamos de repetir por aqui, “não nos representa mais“, ainda que, sim, represente.

Como José Paulo Cavalcanti Filho escreve na apresentação, o Manifesto “não tem a pretensão de merecer estudo nenhum”. A ideia de usar “manifestos” como o da Esquerda Vicejante para divulgar idéias é antiga: remonta desde o clááássico “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, no século XIX até, já no século XX, o “Manifesto Futurista” de Filippo Tomaso Marinetti, publicado no Jornal Figaro (1909);  os brasileiríssimos “Manifesto Antropófago” e “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, do mestre Oswald de Andrade.

Ainda teve os “Manifestos Dadaístas”, de Sami Rosentein – dito Tristan-Tzara; André Breton publicou em 1924 e 1930 dois “Manifestos Surrealistas”, pregando o não conformismo e a fórmula de criação denominada “automatismo psíquico”. Mais recentemente tivemos o Manifesto Neo-concreto, de Ferreira Gullar, Lygia Clark, Amílcar de Castro, entre outros; o Manifesto da Poesia Praxis, de Mário Chamie. Mais recente ainda tem o “Manifesto da Poesia Sampler“, de Fred Coelho e Mauro Gastpar (o próximo que publicaremos). E é bem provável que muitos outros “manifestos” existam ainda, por esse mundão afora.
O Manifesto da Esquerda Vicejante não quer, claro, se comparar com esses todos aí de cima. Ele propõe, “em lugar da esquerda autoritária, arrogante e autofágica, a esquerda auditiva, criativa e cativante.” Desenha “a caricatura da militância”, identificando: “partidos políticos –minha eleição, meu marketing, meus cargos; sindicatos –meu dissídio, minha data-base, minha categoria; movimento social – meu segmento; associações de moradores, meu grupo, minha rua, meu bairro; organizações não-governamentais –meu projeto, meu pobre, meu gringo.
Na defesa irônica do socialismo, o autor faz uma metáfora sexual: “liberalismo, neoliberalismo, é masturbação sem gozo; social-democracia é gozar fora e em pé; socialismo stalinista é transar sem sarro e, muitas vezes, sobre cama de caco de vidro e areia; socialismo com cidadania popular, pluralismo e controle civil é sarro, dança, gozo dentro, conjunto e muitas vezes repetido em boa cama”.
Disfrute.
O Manifesto
“Vicejar (De viço + ejar)
1)Ter viço, vegetar com opulência, viçar (…).
2)Ostentar-se de maneira brilhante ou exuberante; garrir (…).
3) Dar o viço a (…).
4)Fazer brotar exuberantemente (…).5) Brotar, produzir, lançar (…)”
(Novo Dicionário Aurélio, Ed. Nova Fronteira, 2a edição 1986, pág 1773)

1

* Em lugar da esquerda arrogante e autofágica, a esquerda criativa e cativante.

* Em lugar do otimismo compulsório, a esperança crítica.
* Em lugar dos sonhos utópicos, as vigílias programáticas e pragmáticas.
* Em lugar das cartas de princípio, os bilhetes de começo, meio e fim.
* Sempre que se levantar questões, baixar soluções.
* No horizonte dos pontos de partida, os encontros de chegada.
* Antes de procurar as saídas, encontrar as entradas.
* Em lugar das viciadas veredas, os desafiantes caminhos.
* Em lugar das rotas rotinas, as radiosas rupturas.
* Em sintonia com o espírito que norteia, o corpo que suleia.
* E quanto pior, pior.
* E quanto melhor, melhor.
* E o importante são os talhes dos detalhes.

2

* Abaixo MDU: Mito, Dogma, Utopia.
* MDU: o trio tenebroso.
* Mito é a sombra do anão fazendo gigante no muro.
* Dogma é a ponte avançando antes de o rio nascer.
* Utopia é a costura seguindo sem a linha na agulha.

3
* Que a esquerda tenha a coragem de se olhar de frente no espelho. E sem maquiagem.
* Ampla distribuição de espelhos retrovisores para que todos também possam ver a própria cauda.

4

* Abaixo a caricatura atual da militância!
* Partidos políticos: “minha eleição” , “meu espaço” , “meus cargos”
* Sindicatos: “meu dissídio” , “minha data-base”, “minha categoria”
* Movimentos sociais: “meu segmento”.
* Associações de moradores: “meu grupo” “minha rua”, “meu bairro”.
* Organizações Não Governamentais: ”meu projeto”, “meu pobre”, “meu gringo”
* Espaço de ação: “meu protesto”, meu “comício”, “meu fórum”
5
* Abaixo os atos-públicos-atos-íntimos de a gente olhando pra nós, os protestos sem contágio e as greves gerais irreais.
* Fora com o automatismo da ação política calendarizada e eventualista.
* Pela subordinação dos barulhos do marketing ao trabalho de massas.
* Mais programação ao vivo e menos em circuito fechado.
* E aos que pretendem insistir na mesma infecunda mesmice, recomenda-se a contratação de grupos teatrais para encenação de assembléias, passeatas, piquetes e comícios.
* Além de atores e figurantes, dublês e sósias impecáveis dos dirigentes permitirão que eles assistam a tudo em casa e em cores, onde assinarão depois os maravilhosos documentos de avaliação com a abertura: “foi uma vitória” ; e o fecho: ” a luta continua”.

6

* Chega de reproduzir no movimento popular aquilo que se critica nas cantigas do poder.
* Ninguém cria o que não vivencia, lugar de teoria é na prática e democracia pra ser boa começa de casa.
* Que se instaure a democracia entre as forças e os cidadãos de esquerda, não apenas enquanto medida provisória ou estado de emergência, mas como premissa e conclusão, meta e método, escada, trampolim e mergulho de vida e convivência.
* Pela alfabetização democrática.
* Que se providenciem as escolinhas de democracia, do maternal ao curso noturno, para todas as tendências e sub-tendências da esquerda.
7
* Abaixo a ditadura da meia dúzia.
* Chega de falar em nome do povo sem procuração nem consulta.
* Pela mobilização dos não consultados ante as imposições de diretórios, diretorias, gabinetes, escritórios, chefias, equipes, caciques, mandatários e porta-vozes em geral – autorizados, autointitulados, telepáticos e mediúnicos.* Em lugar da ditadura das palavras de ordem, a sintonia com os anseios do povo.
* Contra a privatização do movimento popular por indivíduos ou grupos: gurus, tutores, protetores, patronos, papais, mamães, sociedades anônimas, companhias limitadas, condomínios e consórcios.
8
* Fora com o sadomasoquismo reverberante do tipo: “passei a noite sem dormir”, “hoje quase não comi” e “estou morto de tanto trabalhar”.
* Se noite de sono, fome e excesso de trabalho forem padrão de qualidade militante, que se promova como vanguarda política o trio formado por um vigilante noturno, um faquir e um jumento.
* E que se livre a todos do discurso chantagista da hora-extra militante, utilizada como poupança, lucro ou dividendo, com direito a grosseria e pompa, por quem se considera acionista majoritário da luta popular.
* Pela conciliação entre a luta popular e o leito copular.
* Por uma militância com poesia, prazer, amizade e humor.

9

* Contra o delírio político e a ficção na ação.
* Que os militantes assimilem a objetividade dos humoristas.
* Pela implementação dos Centros Integrados de Arte para Políticos – CIAPs – com abundância de professores surrealistas, abstracionistas e performáticos.

10

* Pelo estímulo à desinibição religiosa entre militantes, notadamente, no círculo dos que se dizem ateus, agnósticos e materialistas, para que diminuam o fanatismo, as igrejinhas, as confrarias e as seitas políticas.
* Que os ateus autênticos colaborem com os religiosos de todos os matizes no esforço pela dessacralização da vida política e para o exercício dos cultos nos lugares devidos.

11

* Pelas assessorias especializadas para todas as vertentes da esquerda psiquiátrica.

12

* Por uma adequada política de administração de narcisos.

13
* Contra a amnésia política daqueles que pretendem soterrar o passado ditatorial.
* Chega do saudosismo vitimista dos que analisam a história a partir do seu umbigo torturado.
* Fora com as mitificações e os tabus.
* Que as vivências, os depoimentos e as memórias sejam tratados como fontes de informação a serviço da atualidade política e da verdade histórica.
* Contra a necrofilia política.
* Que seja repensada a questão dos mortos e desaparecidos durante a ditadura, colocando-se em primeiro plano, não as chagas do seu martírio, mas o significado público e a responsabilidade da sua perda, as informações sobre as suas vidas e os seus jeitos de rir.

14

* Pela interiorização da política.
* Que a esquerda metropolitana deixe de falar em nome de todo o estado, em eventos de composição municipal e crachá estadual.

15

* Pelo crédito de confiança nos controles.
* Todos sabem que dor de cotovelo, gripe, picada de inseto, burocratismo, barata, ranço, má fé, antipatia, idiotice, autoritarismo e picaretagem, não são privilégios de nenhuma corrente ideológica e atacam a todas, com possíveis variações de grau.
* Em lugar da confiança cega em dirigentes e dirigidos, mecanismos eficazes de controle civil e prestação de contas de lado a lado, de cima pra baixo e, principalmente, de baixo pra cima.
* Pela desconfiança constante ante todas as versões e inversões oficiais.
* Que não se ponha a mão no fogo por ninguém.

16

* Pela ótica com ética e a coerência no cotidiano.
* Quanto à ética socialista, não usai seu santo nome em vão.
* Em caso de pendências dentro da esquerda, considerar, inicialmente, que vanguarda também é massa, a carne é fraca e cabeça também é corpo.
* Depois, recorrer em crescendo aos princípios elementares de convivência entre as pessoas civilizadas e mais ou menos honestas, aos códigos de ética profissional, aos direito civil, aos dez mandamentos da lei de Deus e à Declaração Universal dos Direitos do Homem.
* Se for necessário aplicar o Código Penal, concluir que não se trata de pendência socialista e chamar a polícia.


17

* Que as figuras carismáticas e mitológicas da esquerda, da velha, média ou jovem guarda, sejam tratadas como simples mortais, que comem e descomem.
* Sem ranços de fanático desiludido nem ciúmes de candidato a cacique.

18

* Abaixo as cortinas de ferro, os muros de Berlim e os bloqueios do grupismo e do corporativismo: partidário, sindical, comunitário, segmental, grupal, executivo, legislativo e judiciário, militar e civil, patronal e peãozal, intelectual e assessoroso, de baixo e de cima, dianteiro e traseiro, lateral e diagonal, paralelo e transversal.
* Pelos projetos globais, pensando na família, na rua, no bairro, no município, no estado e no país, inseridos no mundo e no cosmos.

19

* Abaixo a ditadura do partidarizado.
* Pluralismo não é sinônimo de pluripartidarismo.
* Pela representação eleitoral dos sem-partido.

20

* Abaixo o derrotismo e o niilismo nacional com afetações de Primeiro Mundo, de parte daqueles que sobrevivem e se pavoneiam no Terceiro.
* Chega de construções lamentosas do tipo “é gente humilde/que vontade de chorar”, que a Esquerda Vicejante propõe como o Hino Nacional da Mendicância.

* Chega de papo de burguesia bondosa distribuindo lençóis de seda para os miseráveis enxugarem as lágrimas.
* Abaixo a política e a estética do vitimismo e da mão suplicante.


21

* A Esquerda Vicejante denuncia o cupulismo como a mais requintada e repelente expressão da cultura política nacional e identifica como seus produtos de exportação:

. o liberal de sala VIP;

. o democrata de condomínio fechado;

. o social-democrata de cobertura;

. o comunista cinco estrelas;

. o esquerdista de vitrine;

. o anarquista de salão;

. o agitador de corredor;

. o ativista de sala de espera;

. o dirigente de cadeira cativa;

. o pré-candidato a cacique;. o cacique jovem-guarda.. a liderança de outdoor; a transparência com vidro fumê.

22

* A Esquerda Vicejante proclama que nada é mais arrogante e raivoso do que um pequeno-burguês, pensando que é proletário, despejando bílis noutro pequeno-burguês.

23

* A Esquerda Vicejante adverte que, a partir das duas horas de duração, toda reunião é inútil.
* Denuncia o caráter antinacional, antipopular, antidemocrático e anti-socialista das reuniões nas sextas-feiras à noite.
* E propõe que a sexta-feira seja oficializada como o dia da “transição psicológica da semana”, preservada contra reuniões palavrosas e seminários semi-áridos.

24

* A Esquerda Vicejante reconhece que, de fato, foi superado o fosso tradicional entre esquerda e direita.
* Mas, considerando o empobrecimento e a miserabilização crescentes das camadas populares, ao lado do enriquecimento máximo das classes dominantes, em verdade vos diz que o fosso foi transformado em abismo, muito mais largo e muitíssimo mais profundo.

25

* Sem medo de ser de esquerda e socialista.
* A queda do muro de Berlim não mata nossa fome nem dilui nossa direita.
*A crise do Terceiro Mundo é também a crise do Primeiro Mundo, onde se situam mandatários e patrões.

26

* Contra a pressa e a impaciência política.
* Não identificar prazos de processo histórico com prazos de biografia individual.
* Chega de só pensar no fim do filme.
* Pela unidade entre a semana e o século.
* Por mais coerência e clareza.
* Contra os requebros da esquerda de quem vem, direita de quem vai, cujo símbolo é um camaleão com fita adesiva.
* Não confundir convivência com aderência.

27

* Sem medo do diálogo e contra o câncer do consenso compulsório.
* Um bom diálogo pode ser o começo de uma excelente discordância.
* Pela polêmica “brutal e sutil”.

28

* Pela radicalidade teórica e prática.
* Vaselina somente para facilitar a entrada e aumentar a profundidade.
* Sem confundir radicalidade com unilateralidade, sectarismo, grosseria,fechamento ao diálogo, ofensa e atrito pessoal.
* “Radicalidade é descer às raízes”.

29

* Contra a fome, o raquitismo político e a subnutrição cultural.
* Pela inclusão dos excluídos.
* Por autonomia e cidadania popular.
* Pela República Alimentarista, fundada no direito democrático de o povo comer à vontade.
* Repúdio a todas as modalidades da engenharia política dominante na história do Brasil:
. poder moderador;
. atos adicionais;
. atos institucionais;
. medidas provisórias;
. pacotes e troca-trocas.

30

*Abaixo as frentes eleitoreiras, nas quais, em alianças com liberais, progressistas e populistas, os núcleos populares, intelectuais, artistas, ativistas, “pagam o boi” em mais valia militante, elaborando programas, mobilizando, cumprindo tarefas, sem garantias nas ações de governo, nem mesmo, das migalhas do churrasco.
* Chega do eleitoralismo de esquerda.

31

* Pela construção de uma aliança acima e além de eventos eleitorais, futricas grupais, instâncias oficiais e trique-triques de caciques.
* Pelas campanhas de mobilização popular partindo das necessidades reais das massas pesquisadas e consultadas
* Que se estabeleçam objetivos atraentes e palpáveis, permitindo avanços e vitórias que melhorem a vida e elevem o astra.

32
* A esquerda vicejante proclama:
* liberalismo/neoliberalismo é masturbação sem gozo;
* social-democracia é gozar fora e em pé;
* socialismo stalinista é transar sem sarro e, muitas vezes, sobre cama de caco de vidro e areia;
* socialismo com cidadania popular, pluralismo e controle civil é sarro, dança, gozo dentro conjunto e muitas vezes repetido em boa cama.
33
* Pela unidade matemática da esquerda e do bloco democrático-popular, a partir das quatro operações fundamentais, da soma algébrica, da razão e da proporção, do máximo divisor e do mínimo múltiplo, da racionalização dos denominadores e das probabilidades.
* Cuidado com as radiciações e as frações.
* E atenção especial no cálculo das funções, ante o risco de zerar o nosso denominador comum.
34
* Pela reativação cultural da esquerda.
* Contra a demagogia dialética, a invenção de contradições e a copidescagem da realidade.
 * Que os intelectuais agônicos se situem no organogramsci democrático-popular,criando e recriando para as décadas.
* Menos parênteses e mais traços de união entre a produção intelectual e a militância política.
* Pela aproximação do intelectual eclético com o povo sincrético.
* Abaixo os premoldados políticos, teóricos e práticos.
* Não confundir sociedade civil com construção civil.
* Nem referência teórica com reverência teórica.
* Nem paradigma com paradogma.
* Nem processo histórico com processo histérico.
* Chega de pensar as coisas do país e da vida como uma neurose de vanguarda.

35

* Pela descomplicação verbal.
* Falar para ser entendido e não para ser decifrado.
* Que todos digam e ninguém coloque.

36

* Pela modernização da esquerda, de A a Z.
* A mesmice da esquerda é o tranqüilizante da direita.
* Que se assuma a modernidade em todos os níveis, enfrentando os preconceitos da Esquerda das Cavernas e sem engolir o dogma de que ser moderno é se aproximar da direita.
* A Esquerda Vicejante reafirma que o maior indicador de modernidade do planeta é o povo comer o mínimo de três vezes por dia, com suco e sobremesa.
*Vamos viver e conviver melhor, com mais universalidade, mais autenticidade, mais realismo, mais ousadia, mais abertura e mais luz.
*Sejamos uma esquerda com raízes, caules, folhas, flores e frutos.

 
Créditos: 1, 2.
Obs: Valeu ao Deak pela dica.

Comment:

  • Reynaldo

    Prezado Leonardo, a análise do Manifesto Sampler (o correto é assim)sairá logo?
    Abraços.
    Reynaldo

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