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Comentário: As vantagens financeiras do anticopyright

Ah, a montagem

Sim! Por trás desta imagem há um conceito

Por dizerem respeito a toda a sociedade, são as novas práticas de distribuição e consumo de cultura que têm estado na parte mais visível da demanda por uma revisão nas leis de direito autoral. Afinal de contas, estes pontos da conversa falam de uma intrincada cadeia econômica que inclui potencialmente qualquer pessoa. Há, no entanto, um debate que corre paralelamente  a este, e que trata de uma revisão igualmente importante para o contexto cultural em que vivemos. A revisão da ideia de autor, e do que consiste seu trabalho.

A arte é um campo cultural dos mais ideológicos, permeado de ingenuidades e mitos que têm tudo pra parecerem perfeitamente naturais, mas que uma análise histórica mesmo superficial apontaria como construções recentíssimas. É possível usar como exemplo a idéia de “novidade” na arte. Make it new, o slogan preferido de Ezra Pound, um dos mais influentes poetas do modernismo norte-americano, tem influenciado gerações de criadores por muitas décadas. Original seria aquilo que apresenta certo grau de novidade, e o papel do autor seria introduzir informação nova no tecido da cultura — informação (arte) que seria fruto do que os românticos chamaram inspiração, posteriormente substituída no imaginário artístico pelo trabalho.

No entanto, historicamente a novidade é um valor moderno — da era moderna, da arte moderna. Nós aprendemos na escola que a cultura romana — sua poesia, seus deuses — foi em boa medida uma adaptação da cultura grega. Da mesma forma, muito da tradição japonesa é herança da cultura chinesa. E nada disso é demérito aos olhos de quem se insere ou inseria nestes sistemas culturais. A educação artística mais antiga passa pelo aprendizado das formas, e o bom artista é quem as domina. Quando a modernidade instaura o “novo” como um valor artístico, a relação do criador com as formas e gêneros passa a ser de superação.

Será por acaso que essa mesma modernidade é a etapa histórica do desenvolvimento do capitalismo, e será que não há qualquer correspondência entre o desejo de novidade da arte moderna e o desejo de novidade da economia de mercado, onde os produtos são cada vez mais velozmente substituídos por outros com aparência de novo? É evidente que a arte moderna produziu obras grandiosas, como a do próprio Pound, e apontar suas ideologias não significa rejeitar sua vanguarda. Significa mostrar que, apesar do apego que a arte possui em relação a suas próprias mitologias, uma simples mudança de perspectiva pode revelar o que há de ideológico em suas crenças.

Político como todos os outros campos da cultura, o campo artístico cria seus mecanismos de defesa e preservação. Os questionamentos levantados nos parágrafos acima têm sido abordados há mais de um século por correntes mais radicais de artistas e pensadores, que vêm apresentando propostas não apenas no campo conceitual, mas na prática criativa, introduzindo conceitos “malditos”, como por exemplo o plágio, no território da criação. Boa parte destes pensadores, no entanto, passam longe dos holofotes da cultura, e embora por vezes seus nomes sejam conhecidos (os surrealistas, por exemplo, fazem parte desse grupo), a radicalidade de suas práticas ainda não foi devidamente assimilada.

É a estes autores que o primeiro parágrafo de As vantagens financeiras do anticopyright faz referência. E ao próprio Critical Art Ensemble, cuja obra se insere nesta longa tradição de roubo e apropriação cultural. Embora eu tenha no último post esboçado uma reflexão sobre outros aspectos do texto, me parece de alguma utilidade comentar antes estas questões. Artistas de rap e hip hop já foram processados por utilizarem samplers de outros artistas. A justiça (ou as empresas, ou certo público) adotaria os mesmos procedimentos diante de cabeções do naipe de um Walter Benjamin, este grande adepto das técnicas de colagem/montagem, e glorioso fumador de haxixe?

"Hmmm, isso aqui dá pra usar..."

Walter Benjamin: "Hmmm, isso aqui dá pra usar..."

O próprio cinema, inclusive o milionário cinema hollywoodiano, não vive sem apropriação. O exemplo que me ocorre agora é o daquela cena em Be Cool em que John Travolta e Uma Thurman repetem a dança que haviam protagonizado antes em Pulp Fiction. A própria música do Black Eye Peas que serve de trilha começa com uma referência a Tom Jobim. Costuma-se chamar este tipo de procedimento de citação. Trata-se, no entanto, de um tipo muito peculiar de citação, em que se omite a autoria do “original”. Outro nome para esta modalidade criativa seria plágio.

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=rKHhbOaM5xs]

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=4Xwxce3ubK4]

Mas o plágio não é um fruto deliberado da má-fé como prega o senso comum. A rigor, é qualquer utilização de ideia ou linguagem que não remeta explicitamente ao original. Note o detalhe da linguagem. Isto quer dizer que, em certos meios (o acadêmico, por exemplo), pegar uma expressão emprestada de alguém sem mencionar explicitamente este alguém já é considerado plágio, ainda que não tenha havido roubo de ideia. A citação cinematográfica é plágio porque não remete explicitamente ao original. Ninguém avisa lá nos créditos finais que determinada cena é uma citação de outra.

Por que isto não nos choca, enquanto público? Porque em geral, nós conhecemos a obra que deu origem à segunda obra, ou temos algum amigo cinéfilo que conhece e nos conta, todo exibido. Isto não acontece com a mesma frequência quando se trata de outras modalidades de criação. Socialmente, lemos menos do que vemos filmes. Portanto a possibilidade de reconhecer um filme dentro de outro é mais presente do que a de reconhecer um livro dentro de outro. O risco que não podemos correr é o de nos sentimos insultados ao não o reconhecermos. O risco de nos tornamos intolerantes.

Guy Debord, um dos maiores e mais criativos plagiadores que o século 20 conheceu, chamou a atenção para isto no fim da vida. Debord ficou famoso por sua atuação teórico-prática no Situacionismo e sobretudo pelo livro A Sociedade do Espetáculo, que abre com um caso clássico de plágio. O primeiro parágrafo da obra é literalmente o primeiro parágrafo de O Capital, do famoso atacante do Vasco Karl Marx, com apenas uma troca de palavra. A técnica ficou conhecida como detournement, que seria algo como um desvio, uma citação desviada.

Os usos de Marx

Os usos de Marx

Sem entrar em muitos detalhes, o objetivo era mostrar que a etapa do capitalismo em que vivíamos pelo acúmulo de mercadorias havia passado, e chegara o tempo em que no lugar delas passáramos a acumular apenas imagens de mercadorias — espetáculos. Daí que, ao invés de citar o parágrafo original e discorrer sobre ele até alcançar uma conclusão, Debord julgou mais útil (por razões que não cabem discutir neste já longo texto) a substituição direta do que já não servia.

No fim da vida, em seu último livro, ele desistiria do procedimento, e registraria que esse tipo de técnica seria adequada apenas a sociedades que fossem capazes de reconhecê-la. Esta é a chave do roubo criativo. Ao contrário do plágio praticado por pura falta de talento, o plágio criativo funciona para revelar, não para ocultar suas origens. Ele não pretende muito mais do que ser uma forma mais direta de entrar no longo diálogo do conhecimento.

[Reuben da Cunha Rocha.]

Comments:

  • Augusto Machado Paim

    Tem vários casos clássicos na literatura, também. Se não me engano, algo envolvendo Eça de Queirós e Flaubert, o segundo copiando o primeiro.

  • Reuben

    Grande Augustóteles,
    É o contrário. Mas é isso aí, o roubo sempre acompanhou a criação, e não num sentido ruim. Algumas ideias são reaproveitadas e reaproveitadas ao longo da história. Basta pensar no Fausto, que rendeu mais de um clássico. Ou nas mitologias, que abasteceram a arte renascentista. Num certo sentido, Goethe e DJ Shadow são mais próximos do que se imagina.
    Abraço!

  • César Lacerda

    Este blog é maravilhoso. Lê-lo tem auxiliado bastante na minha busca atual por caminhos, ou (quase-)respostas para questões da cultura que me afeiçôo tanto.
    As idéias perigosas desse blog são o máximo.

    Mas Reuben, fica claro que estamos no meio de um grande processo. Um processo muito intrincado, que antes de tudo, clama urgentemente por novos suportes (por mais que este seja sua própria negação). Fica claro que a ideia da indústria fonográfica está profundamente atrelada a todos os modelos de capitalismo. E esta indústria conseguiu estruturar um traço muito profundo na sociedade, borrando, assim, projetos mais democráticos e universalizantes na sociedade.
    Mas, dentro da ideia de anticopyright, existem possibilidades concretas, não-marginais de atuação? Ou anticopyright se refere a um processo marginal que não convive com o sistema capitalista?
    -Refiro-me à marginal não no sentido taxativo e distorcido, mas apenas a algo que ocupa uma posição à margem.-

    (Pergunto sem nenhum tipo de juízo de valor, mas sim por curiosidade.)

    Abraço!! =)

  • Reuben

    Salve, César!
    Acho que o post anterior a este aponta na direção da tua pergunta. Depois dá uma olhada. O fundamental serão sempre as possibilidades concretas sim. Acho que as ideias mais perigosas são as mais consequentes. 😉
    Curti bastante o teu som. Aliás, só ouço coisas boas vindas de BH.
    É isso, apareça!
    Abraço

  • carolina

    “As idéias perigosas desse blog são o máximo”

    essa é a melhor frase nas caixas de comentário desse blog até agora.
    e reuben, teu texto tá mais malvado! eu gosto dele assim, infelizmente :DDD

  • Aracele Torres

    esse post cheira a subversão.
    e eu adoro!
    muito, muito bom.

  • Danilo Idman

    Nada se cria, tudo se transforma… já dizia o ditado.
    Adorei este texto, voltarei mais vezes.

  • Allyson Veras

    Caro Reuben, texto maravilhoso. Permita-me fugir da Cultura e acrescentar esse humilde ponto de vista. Sabemos que esse debate não é restrito à arte. A técnica e a tecnologia à serviço da ciência criou inúmeros plágios e fabulosas novidades. Cito um dos caras mais empreendedores de nosso tempo. O negociante Steve Jobs que na década de 70 criou o Macintosh com o design baseado numa empresa de eletrodomésticos da década de 30 é o mesmo que financiou a criação da PIXAR, anos depois. O salto da animação 2D para a 3D é a reunião de capital financeiro e humano a favor da criação de uma nova estética. Neste caso em especial, as vantagens financeiras do anticopyright não corresponderiam aos interesses da Disney (responsável pela distribuição e estratégias de marketing da parceria), ou de qualquer quem veja o lucro como condição para se sentar à mesa de negociação. Acredito que há que existir o estalo inicial. Baseado em trabalho, planejamento e claro caminho de onde quer se chegar. Como todos sabemos o insight com foco, estruturado sobre a lógica do capital é o que convencionou-se chamar de sonho americano. E nós o que queremos ser? Há um “sonho brasileiro” que leve para além de nossos quintais tudo o que somos capazes de realizar como nação? Podemos ser mais que o futuro celeiro do mundo. De certo vivemos a excitante era do novo, mas há um descompasso no limiar das rupturas que seguem e que estão por vir.

  • baixacul

    Caroll,
    Também fiquei feliz com a frase, e na sequência, com teu comentário. Tu viu o texto no Imparcial?
    Aracele e Danilo: Oba!
    Allyson, bróder, sei nem como te agradecer o comentário-artigo.
    Abraços!
    Reuben

  • Cadu Simões

    Gostaria de acrescentar a esse excelente artigo a informação de que na grécia antiga os artistas trabalhavam dentro de um arcabouço comum de mitos e contos populares, e portanto, “plagiavam” uns aos outros o tempo todo, algo que não era visto como ruim ou prejudicial.

    Aliás, a idéia de autor para o grego antigo é mais próxima do conceito de “aquele que molda algo que já existe dentro da tradição em uma nova obra” do que “daquele que cria algo novo”, até mesmo porque, dentro da mentalidade deles, apenas os Deuses seriam capazes de criar algo do nada (e de fato, é impossível para o Homem criar algo do nada, mas apenas tranformar aquilo que já existe).

    Portanto, podemos concluir que na grécia antiga, há quase 3 mil anos atrás, quando os aedos etoavam seus cantos épicos em festas, banquetes e festivais, já havia uma cultura de “remix” e “samplers”, mesmo que ele desconhecessem esses conceitos modernos e não nomeassem dessa forma.

  • carolina

    ei, ei, ei!
    eu vi!
    como é que rolou essa ponte??
    beijos

  • baixacul

    Pois é, Cadu, é só educar o olhar que a gente enxerga essas coisas.
    Caroll: rolou na cara de pau!
    reuben

  • Marco Gomes

    Excelente texto.

    Destaque para os vídeos citados no texto, que ironicamente foram removidos por quebra de copyright 😀
    http://img713.imageshack.us/i/screenshot20100812at165.png/

  • baixacul

    Marco,
    Valeu pelo aviso (e desculpa aí pela resposta tardia). O Youtube deu uma apertada geral com relação às supostas violações de copyright de seus vídeos. Uma pena que tenha seguido essa linha idiota, mas sempre há alternativas, afinal o Youtube não é nem nunca vai ser o único site pra fins de hospedar vídeos – ainda mais com ações desse tipo, não?
    Vamos procurar se achamos os videos em outros locais para recolocá-los no post. Acho meio brabo, porque é o tipo de caso de vídeo que é tão específico que só num mega portal como o Youtube para ter. Se souber de algum nos avisa, ok?
    abraço!

    • baixacul

      Após muito custo, encontramos os videos. Inclusive baixamos pra garantir que, se caso forem retirados novamente, vamos repor.
      Abraço!

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